“A linguagem não é mesmo feita para que se acredite nela, mas para obedecer e fazer obedecer. A indiferença dos comunicados em relação a qualquer credibilidade, frequentemente beira a provocação.”
O filósofo francês Gilles Deleuze, pensador morto em 1995 que ousou contestar os intestinos do sistema, questiona sobretudo a linguagem, como se vê acima, em trechos tirados de “Capitalismo e Esquizofrenia”, volume 2. É simples e complexo perceber seu pensamento. Deleuze apostava na força de cada indivíduo. Para ele, humanidade é uma expressão que não transmite o que é preciso: o ser singular. “É a unidade que produz a diversidade”, dizia. Assim também, a linguagem para ele só existe através das diferentes línguas, não pode ser considerada um bloco junto e coeso.
Não por acaso Deleuze está no filme “Humanidade 2012”, que a diretora Bia Lessa prefere chamar de documento, não de documentário. As imagens foram captadas no projeto homônimo que aconteceu no Rio de Janeiro, paralelamente à Conferência Rio+20 em 2012, em que a atriz uniu empresários, políticos, atores, músicos, enfim, pessoas de vários matizes para pensarem, juntos, sobre o futuro desse planeta que anda nos impondo reflexões. Em várias linguagens, em diferentes línguas.
Nesse documento, patrocinado pela Firjan, Sesi e Senai, Escola de Cinema Darcy Ribeiro e Fábrica da Imagem, quase todos tiveram seu espaço. De um modo sutil, sem interferências editoriais, deixa patente, lembrando outro filósofo, Robert Musil, de “O Homem sem Qualidades”, que “palavras são como macacos, vivem pulando de galho em galho”. Sustentabilidade, humanidade, aquecimento global, economia verde, entorno, responsabilidade, planeta, justo, social, cultura, respeito... Ditas em discursos que podem parecer coerentes a ouvidos anestesiados pelo momento, por um jogo de luzes, pela música certa, são palavras que atingem o que o palestrante quer. Mas, que se vá buscar a unidade, o sentido, o verdadeiro... Muitas vezes, será em vão.
Bia Lessa percebeu que quando acabou o projeto Humanidade, que ocupou um espaço lindo ali no fim do Posto Seis, na Praia de Copacabana, os discursos ainda estavam setorizados.
“Faltava dar uma forma, ter o que aquelas pessoas falaram num documento, por isso prefiro chamar de documento, não de documentário. Nossos discursos carecem de praticidade. E há pessoas que falam muito bem no filme, como o Boaventura (sociólogo Boaventura de Souza Santos) que alertou para o fato de que está havendo uma comercialização de tudo, até da sustentabilidade”, disse a diretora. O filme foi lançado num evento na quarta-feira passada (14) e agora o trabalho será organizar no sentido de levá-lo à exibição nacional e disponibilizá-lo na internet.*
Para quem está, como eu, mergulhada no tema sustentabilidade há anos, não é novidade ouvir a teoria tão distanciada da prática em alguns dos discursos.
Como quando o empresário Eike Batista, hoje alvo de denúncias de crimes contra o mercado financeiro, usa o microfone para anunciar a “gestão integrada de território”, projeto para ele muito bem sucedido em sua empresa. Cita como exemplo de tal gestão o entorno do Porto do Açu, em São João da Barra, no norte-fluminense, e termina dizendo: “Não posso ver um futuro com favelas ali que, na verdade, fui eu que criei. Nosso projeto vem funcionando muito bem”.
Na reportagem “Porto do Açu, um novo latifúndio”, publicada um ano depois no site do Canal Ibase – do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas –, mostra uma realidade bem diferente. A comunidade foi atingida, com cerca de 1.500 famílias impactadas. Sem diálogo, sem responsabilidade com o entorno. Talvez mais concernente à fala de outro empresário, Eliezer Batista, pai de Eike, que defende no filme: “Esse entorno dos grandes projetos não é responsabilidade nossa. Mesmo porque, em alguns casos, se você começa a tomar medidas exigidas pela população do entorno, o projeto pode se tornar inviável”.
Interessante notar o emprego do pronome de tratamento na terceira pessoa para referir a si próprio. A prática, que leva a um distanciamento da ação, é usada na maioria dos discursos feitos por outros executivos durante o filme.
Bia Lessa escolheu dar espaço também para as empresas de alimentos, consideradas pelo “meio sustentável” as grandes vilãs da segurança alimentar por fazerem uso de defensivos agrícolas, para muitos um eufemismo. São venenos, inseticidas, produtos tóxicos que têm no Brasil um campo fértil (somos o país que mais consome) e na fome a desculpa que faltava. Tais corporações acreditam que só com a possibilidade de usar química para eliminar as pragas é que se conseguirá alimentar hoje os 7 bilhões de habitantes, amanhã os 9 ou 10 bilhões.
Uma das marcas se vangloria pelo fato de que 20% do frango de todo o mundo são comercializados por ela: 7 milhões abatidos por dia. E a empresa cuida de tudo: do grão que o bicho vai consumir antes de ser abatido ao abate, ao esquartejamento para caber em embalagens que vão parar nas gôndolas dos supermercados. Há quem se incomode muito justamente com isso. A ave, ou o porco, ou o boi, comem apenas aquilo que os técnicos pagos pela empresa acreditam ser a melhor refeição para a engorda. Só produtos processados. Por tabela, quem compra e come também está ingerindo essa química.
Outro personagem do mundo dos alimentos processados evoca o direito de escolha de cada um e usa as palavras para alertar a plateia: “Não estamos em condições de dispersar nenhuma tecnologia”. Novo eufemismo é empregado: o melhoramento genético, espécie de milagre do mundo moderno para tornar a Terra capaz de alimentar tanta gente.
Sergio Besserman, economista, ambientalista, aparece logo depois e atenua a auto-conclamada dose de responsabilidade sobre tais ombros. Ninguém tem fome por falta de alimento nesse mundo, mas por desigualdade social. Só naquele ano, foram desperdiçadas 1,3 bilhão de toneladas de alimento no mundo. E acrescenta um dado que é desprezado nos discursos sobre as maravilhas dos alimentos não naturais: o nitrogênio está na base dessa tecnologia para modificar tais produtos. Segundo os últimos relatórios científicos, nos últimos cinco anos o planeta está mostrando esgotamento também em sua capacidade de reciclar esse gás.
A chef Roberta Sudbrack, conhecida por sua habilidade em fazer pratos simples e gostosos, usando nada de métodos ultramodernos, arremata o assunto de maneira também simples. Sua fala exprime leveza. Para ela, a solução é trabalhar o ingrediente como ele veio ao mundo. “Que eu não precise forçar a barra nem de trabalhar com alguma coisa que eu não tenha naquele momento nem de fazer um cardápio que eu precise impor condições para a natureza. O moderno é arranjar uma forma de agredir cada vez menos e respeitar quem planta, quem colhe, a sazonalidade”, diz ela.
Modernidade, outra palavra que ganha contornos variados. O crítico de cinema José Carlos Avellar lembra que a produção industrial gerou duas figuras emblemáticas de uma era no cinema. “King Kong”, lançado na década de 30, caracterizava um personagem da natureza que punha em perigo os cidadãos urbanos. Já “Godzila”, exibido no final do século XX, é um monstro que saía do mar para atacar porque fora afetado pela irradiação. A experiência do bombardeamento atômico das cidades de Hiroshima e Nagasaki influenciaram o drama. Cada filme, em sua época, era moderno.
E quanto mais eu escrevo, mais detalhes do documento me vêm à cabeça. Na conversa com Bia Lessa, contei-lhe que comecei a assistir ao filme no domingo à noite pensando em desligar em seguida e recomeçar no dia seguinte. Mas fui direto. Em alguns momentos tensa, em outros aliviada, ia renovando os sentidos, refletindo sobre a incapacidade de se ser taxativo sobre um tema tão complexo. Com um detalhe saboroso: o filme é embalado por músicas cantadas por Caetano Veloso, Fernanda Takai, Os Ritmistas...
Cerca de 210 mil pessoas estiveram no projeto Humanidade 2012, e sabe-se lá o quanto cada um saiu afetado por tudo o que estava assistindo, lendo. Impossível perceber a unidade sem fazer contato com cada um. Diferentemente de Deleuze, que não dá importância ao simbólico e não acredita numa única solução para problemas tão diferenciados, o psicanalista Benilson Bezerra Jr. convida a refletir sobre sonhos e sugere uma solução:
“O mundo não vai mudar se a gente não começar a mudar a nossa concepção do que é ser humano, do que seja ser parte dessa coletividade chamada Humanidade”.
*Mais informações sobre quando o filme estará disponível podem ser conseguidas pelo email bia.bitrica@gmail.com
*Foto:
Instalação do evento Humanidade 2012 (Marcos de Paula/Agência Estado/Arquivo)
Sala do evento Humanidade 2012 (Alexandre Durão/G1/Arquivo)
http://g1.globo.com/natureza/blog/nova-etica-social/post/filme-sobre-evento-humanidade-2012-traz-reflexoes-respeito-do-futuro-do-planeta.html
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