O tratorista Valdomiro Vieira dos Santos Neto, 34 anos, sempre esteve 
atento às cobras. Trabalhador de uma usina de cana-de-açúcar na região 
de Miguelópolis (SP), ele sabe da ameaça venenosa que representa uma 
cascavel, por exemplo. Mas não imaginava que um bicho peçonhento muito 
menor teria o poder de devastar sua família. Há um mês, a picada de um 
escorpião causou a morte de Felipe, seu filho de 3 anos. O menino foi 
atacado na mão enquanto brincava com um caminhãozinho dentro de casa.
"A gente tem que evitar entrar em contato com um animal desses", disse 
Valdomiro, bastante abalado. "Mas eu não tinha essa instrução."
Responsável por 184 mortes no Brasil em 2017, o escorpião ultrapassou as
 serpentes no topo do ranking de animais peçonhentos que mais matam no 
Brasil, de acordo com dados do Ministério da Saúde. No mesmo ano, foram 
registrados 105 casos de morte por veneno de cobra.
De 2013 para cá, aumentou em 163% o número de óbitos causados por esse 
artrópode; naquele ano, eram apenas 70. A proporção no aumento das 
mortes é muito maior do que a dos casos notificados de escorpionismo, ou
 seja, situações em que o escorpião injeta veneno em uma pessoa através 
do ferrão, sem necessariamente levá-la à morte. Eles somaram 125.156 no 
ano passado, diante de 78.363 em 2013, um aumento de quase 60%.
Os estados de São Paulo e Minas Gerais exibem a situação mais alarmante 
nas tabelas do Ministério da Saúde. Ambos registraram, respectivamente, 
26 e 22 mortes por picada de escorpião em 2017.
'O caminhãozinho picou minha mão'
A mulher de Valdomiro, a dona de casa Camila de Oliveira Diniz, 28 anos,
 conta que, no dia em que seu caçula foi picado, o marido havia 
arrastado um armário para consertar uma das portas do móvel. Ela supõe 
que o escorpião, bicho que gosta de lugares escuros e úmidos, estivesse 
entocado ali atrás.
Assim que o menino reclamou que "o caminhãozinho tinha picado a mão", 
Valdomiro viu um escorpião amarelo de costas escuras subindo pela 
parede, perto do brinquedo. Matou o animal com um chinelo e o colocou 
num papel. Correu com o filho e o bicho para o pronto-socorro do 
município, a cerca de cinco minutos de carro da sua casa.
O pronto-socorro de Miguelópolis não tinha soro antiescorpiônico quando 
Felipe e seus pais chegaram ali, no dia 5 de junho, por volta das 15h. 
Eles foram então encaminhados em ambulância para Ituverava, a 35 
quilômetros de distância, onde o menino foi medicado.
"Depois de tomar o soro, ele parecia bem, conversou, perguntou dos 
cachorros, a gente tinha certeza de que ia trazer ele pra casa", diz a 
mãe. Ela recorda que à noite, no entanto, ainda no hospital, o filho 
vomitou, começou a piorar. Ela logo percebeu que o estado de saúde dele 
se agravara por causa da movimentação da equipe médica. Felipe chegou a 
receber massagem cardíaca, mas seu corpo deixou de reagir à 1h da manhã.
 "Deus recolheu o Felipe", disse Camila.
O casal tem outros dois filhos, de 13 e 10 anos, e não se conforma com o
 fato de a cidade em que mora não dispor do antídoto. "Se o soro 
estivesse mais perto e mais à mão...", afirma a mãe. Lembrando que um 
rapaz, conhecido de Valdomiro, tinha tomado recentemente uma picada de 
escorpião na cabeça, completou: "Está cheio deles por aqui. Se eu posso 
dizer algo para os pais é que façam uma busca efetiva pela casa, dia 
sim, dia não, atrás dessa criatura."
Em entrevista à emissora EPTV no dia 6 de junho, a coordenadora de saúde
 do município de Miguelópolis, Adib Abrahão, reconheceu que há 15 anos a
 cidade não tem soro antiescorpiônico disponível para seus cidadãos, mas
 que estaria "vendo todo o protocolo" para adquirir o medicamento. A 
prefeitura não respondeu à BBC News Brasil para informar se providenciou o soro.
A população de Miguelópolis tem por prática colocar os escorpiões que 
mata em garrafas PET ou vidros com álcool. Suas coleções pessoais são 
arregimentadas no banheiro, na cozinha, na área de serviço, nas dobras 
de lençóis e mosquiteiros, no meio do lixo ou do material de construção 
estocado perto ou dentro de casa. A maioria dos casos é de picadas nos 
pés e nas mãos, seguidas de dor intensa no local, que costuma irradiar 
para os membros. Por vezes, aparecem vermelhidão, inchaço e/ou febre, 
sintomas ainda considerados leves.
Em casos mais graves, porém, o quadro pode evoluir para náuseas, 
vômitos, dor abdominal, sudorese excessiva, taquicardia, salivação fora 
do normal, agitação ou prostração, perda do controle cognitivo, 
insuficiência cardíaca, edema pulmonar e choque. "O veneno do escorpião 
tem uma ação neurotóxica, afetando o sistema nervoso central", diz a 
bióloga Gabriela Cavalcanti, que trabalhou com escorpiões durante toda a
 sua graduação na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
A recomendação, em caso de ferroada, é procurar o serviço de saúde mais 
próximo. Limpar o local da picada com água e sabão pode ser uma medida 
auxiliar, desde que não atrase a ida da pessoa ao posto de atendimento. 
Não se deve fazer torniquete, aplicar qualquer substância no ponto da 
picada nem fechá-lo com curativo, para não favorecer infecções.
Pernambuco, onde mora Cavalcanti, é o terceiro estado com maior número 
de mortes por picada de escorpião. No ano passado foram 9 delas, segundo
 relatório epidemiológico do Ministério da Saúde.
Onde tem barata, tem escorpião
Em janeiro de 2018, um menino, também de 3 anos, teria sido vítima do 
animal peçonhento enquanto assistia à televisão sentado no sofá de casa,
 em Jaboatão dos Guararapes, região metropolitana do Recife. A mãe não 
entendeu, de imediato, o porquê do choro da criança. Só quando um dos 
dedinhos do garoto passou a ficar roxo ela o levou para o hospital. 
Moradores do bairro em que mora a família do garoto, Cajueiro Seco, 
afirmaram ser comum flagrar o bicho nas residências, onde também se 
multiplicam baratas, para as quais pouco se dá bola.
"Mas onde prolifera barata, tem escorpião", afirma a infectologista Fan 
Hui Wen, gestora responsável pelo Laboratório de Artrópodes e pelo 
Núcleo Estratégico de Venenos e Antivenenos do Instituto Butantan, em 
São Paulo. Baratas são um dos alimentos preferidos dos escorpiões.
Com especialização em saúde pública, a médica cansou de ver casos em que
 houve demora no diagnóstico por problemas de comunicação com crianças 
pequenas – que ainda não conseguem verbalizar o que teria causado o 
incômodo que sentem. Só quando começam a vomitar, por exemplo, é que os 
pais procuram o pronto atendimento.
A velocidade de ação do veneno varia de pessoa para pessoa, mas a vítima
 pode morrer duas horas depois de picada. "Um dos motivos pelos quais o 
óbito por animal peçonhento choca muito é por ser abrupto", diz Wen. "A 
pessoa está bem, brincando ou trabalhando, e de uma hora para outra 
entra num quadro agudo."
Crianças abaixo de 7 anos e idosos com saúde debilitada são os que 
exigem mais atenção, por apresentarem maior risco de alterações 
sistêmicas. Trabalhadores da construção civil, de madeireiras e de 
distribuidoras de hortifrutigranjeiros também estão mais vulneráveis ao 
ataque porque manuseiam objetos e alimentos nos quais o escorpião pode 
se alojar.
Compra de doses
O Ministério da Saúde informa que foram firmados contratos com os 
Institutos Butantan e Vital Brazil para o fornecimento de 62 mil frascos
 do soro antiescorpiônico para todo o país neste ano. O Butantan, em São
 Paulo, responderia por 44 mil frascos (70,97% do total) e o Vital 
Brazil, com sede em Niterói, pelos 18 mil restantes. Segundo a pasta, o 
ministério passa os frascos para os governos, que os repassam aos 
municípios.
A médica Wen destaca, ainda, que o Butantan recebeu a encomenda 
ministerial de 35 mil frascos de soro antiaracnídico, um combinado que 
neutraliza picadas de escorpião e de duas aranhas venenosas, a marrom 
(Loxosceles) e a armadeira (Phoneutria). Uma pessoa picada por escorpião
 pode tanto receber o antiescorpiônico quanto o antiaracnídico, mas o 
inverso não funciona. "Nesse caso, a prioridade do antiaracnídico é para
 as picadas de aranhas", atesta. Em 2017, segundo dados do Ministério da
 Saúde, foram notificados 32.859 casos de acidentes com aranhas, 
culminando em 30 mortes.
Wen insiste que nem todos os casos de escorpionismo evoluirão para um 
quadro sistêmico. Cerca de 15% precisarão do soro, justamente por 
apresentarem os sintomas mais graves. Quando isso se manifesta, 
recomenda-se usar três frascos por paciente.
"Tem de ser de uma vez só. Não adianta neutralizar metade e, daqui a 
três horas, aplicar o soro novamente, porque o restante do veneno que 
ficou circulando no corpo vai continuar agindo." Por ser uma medicação 
intravenosa, é necessário que seja ministrado em ambiente hospitalar, 
cuja equipe precisa avaliar se, além do soro, é recomendável um cuidado 
adicional.
O soro é produzido a partir do veneno do próprio escorpião. No Butantan,
 a fonte são cerca de 15 mil desses aracnídeos, todos alimentados em 
cativeiro. A imensa maioria, 99% deles, pertence à espécie Tityus 
serrulatus, a mais comum no Sudeste, exatamente a que teria atacado 
Felipe. Mas o soro funcionaria também para o Tityus stigmurus, que 
predomina no Nordeste do país. Ambos têm uma carapaça amarelada.
Proliferação urbana
Gabriela Cavalcanti explica que um dos motivos da multiplicação 
acelerada do serrulatus e do stigmurus é que eles podem se reproduzir 
tanto pela forma sexuada quanto por partenogênese, isto é, quando a 
fêmea não necessita do macho para originar filhotes. A segunda maneira, 
segundo a bióloga, é a preferencial dos animais nos centros urbanos pela
 eficácia no ambiente.
"A prole nasce idêntica à mãe, são portanto todas fêmeas, e com a mesma 
capacidade de se reproduzirem sozinhas", diz a bióloga. Um exemplar 
dessas espécies vive, em média, quatro anos. Cada fêmea pode gestar três
 a quatro vezes ao ano, e cada prole de serrulatus chega até a 20 
filhotes. A taxa de natalidade do stigmurus é mais baixa: de 8 a 14 
filhotes.
Para os especialistas, o motivo principal da disseminação desses animais
 no país é a ocupação irregular e desordenada das cidades, agregada a um
 saneamento básico precário e as toneladas de lixo que se alastram pelo 
meio urbano.
A preservação de inimigos naturais dos escorpiões, como corujas, 
lagartos, sapos e galinhas, está no rol das prevenções efetivas 
apontadas pelos especialistas. Já os inseticidas, por outro lado, são 
condenados. Borrifá-los pela casa não só pode afetar cachorros e gatos, 
como desalojar os escorpiões de seus esconderijos e aumentar o número de
 acidentes.
Fonte: BBC Brasil