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sábado, 8 de novembro de 2014

Betinho tinha pressa para acabar com a fome, que hoje ainda afeta 800 milhões

Ninguém há de ter saudades daquele cenário político. Mas o fim da década de 1980, com a democracia recém-instalada no país e a volta de exilados, entre eles Betinho, até então apenas conhecido por ser o “irmão do Henfil”, trouxe uma efervescência aos meios sociais que causa orgulho em muita gente que participou dela. Em 1993, já com um primeiro presidente civil eleito pelo povo devidamente desempossado, e outro no lugar, foi o momento de espanar a poeira da ditadura, criar organizações e protestar por um mundo melhor para todos.

Naquele instante, o foco não poderia ser apenas a pobreza. Era preciso dar nome e endereço às vítimas de um sistema perverso que deixava, na época, 32 milhões de pessoas sem ter o que comer. Foi quando, em 24 de junho de 1993, Betinho, que já se transformara na cara do manifesto contra a fome, convocou os brasileiros a assumirem um papel ativo para mudar o vergonhoso cenário. É uma história bonita, que precisava mesmo ser contada de forma perene, por pessoas que participaram daquele momento e estão por aqui, ainda ativas, entendendo que a memória, nesses casos, deve ser refrescada. É essa a principal função do livro “Ação da Cidadania 20 anos”, lançado nesta quinta-feira (25), escrito por Nadia Rebouças. O patrocínio de poderosas corporações para a edição, muito bem feita, com várias imagens belíssimas da época, revela a certeza atual, no mundo das empresas, da necessidade de cuidar da imagem, esse valor intangível.
Betinho chamava empresários, ricos, remediados e a imprensa para fazerem uma espécie de cruzada para levar alimentos a quem não os tinha. Como repórter do jornal “O Globo”, saí às ruas várias vezes para fazer matérias sobre o tema. Ainda me lembro da primeira que fiz para mostrar que a fome não estava só no Nordeste, nos rincões secos da caatinga, mas também aqui no Sul/Sudeste, bem perto de nós. A poucos quilômetros do centro financeiro do Rio de Janeiro, a Avenida Rio Branco, que jorra capital – especulativo ou não –, encontrei um menino de uns 7 anos tomando conta do irmão recém-nascido num barraco de madeira erguido na então Favela do Chatuba. A mãe estava trabalhando ali bem perto, no lixão de Gramacho.

Não preciso nem puxar muito da memória para lembrar o horror que eu senti quando olhei o fogão do barraco e encontrei duas panelas. Uma, com resto de um arroz cheio de mosca. Outra, com o leite que o menino deveria dar ao irmão: estava azedo. O texto da reportagem correu mundo. Alguém do outro lado do Atlântico escreveu (era década de 90, ainda não tínhamos internet, lembra-se?) e adotou as crianças. Final feliz.
E assim foi acontecendo. Betinho batendo à porta, sendo ouvido. Pessoas do mundo artístico davam sua imagem para a campanha, empresas foram chamadas também para mostrar sua responsabilidade social. O quadro foi se mantendo menos aterrador. Era assistencialismo sim, o próprio livro recém-lançado admite isso. Mas foi preciso fazê-lo, a urgência era grande. "Quem tem fome, tem pressa", dizia Betinho.

A campanha foi ganhando outros contornos, outras premências vieram à tona, outras demandas foram sendo denunciadas. “Fome de emprego também mata!”, dizia Betinho. Até o dia 9 de agosto de 1997, quando a Aids, doença estúpida, matou o sociólogo.

“Agora é com vocês!” Esta espécie de última mensagem passou a circular entre aqueles que queriam viver num país menos desigual. Entre eles estava o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que desde o início colaborou com a campanha elaborando um documento de 20 páginas no qual propunha a criação de uma Política Nacional de Segurança Alimentar, prevendo o nascimento do atual Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), que pôs em execução tão logo assumiu seu primeiro mandato, em 2002.
De lá para cá, sim, os miseráveis e famintos foram tendo oportunidades de sair dessa classe, da ralé, e assumir outro status. Oficialmente são a “nova classe média”. Mas para alguns estudiosos, como o sociólogo Jessé Souza, são os batalhadores brasileiros, pessoas que dão duro, de sol a sol, para não caírem de novo na condição em que estavam. Por outro lado, passam a ser vistos pelo mercado como consumidores. É bom, sim, mas se não tiverem cabeça, acabam acumulando um monte de dívidas. Bem, mas isso é outra história.

Coincidentemente, na terça-feira (23), portanto dois dias antes do lançamento do livro que conta a história de Betinho e seu sucessor Maurício Andrade – outro personagem importante nessa trajetória de luta contra a fome e a miséria no Brasil – a Food and Agriculture Organization (FAO), agência da ONU que estuda e pesquisa sobre agricultura e alimentos no mundo, lançou um novo relatório (veja aqui o resumo, em inglês). A boa notícia é que sim, a desnutrição caiu de 18,7% para 11,3% globalmente, e de 23,4% para 13,5% nos países em desenvolvimento no período de 2012 a 2014.

Outra boa notícia é que a América Latina e Caribe fizeram o maior progresso entre as demais regiões. O Brasil está entre os 25 países que não só atingiram a meta proposta pela ONU em 2000, com os Objetivos do Milênio (ODM), a de reduzir à metade a proporção de pessoas com fome, como também reduziu o número absoluto da população nessas condições. Doze países tinham um nível de desnutrição abaixo de 5% entre 1990 e 1992 (entre eles, nossa vizinha Argentina) e foram capazes de mantê-lo assim. E 38 cumpriram a meta dos ODM, de reduzir a proporção de pessoas com fome, sem reduzir o número absoluto.

A má notícia é que ainda existem 805 milhões de pessoas cronicamente desnutridas no mundo. É um número que insiste, abusa da nossa capacidade de entendimento. Há um ano fiz uma entrevista com a presidente do Consea, Maria Emilia Pacheco (veja aqui) e ela já me dizia isso. Afinal, o que acontece?

Com este enorme ponto de interrogação na cabeça, me deparei, lá mesmo na livraria onde houve o lançamento do livro sobre Betinho, com outra recente publicação, do "Le Monde Diplomatique Brasil" e editado pela Editora Veneta, chamado “Thomas Piketty e o segredo dos ricos”. Se não responde totalmente à pergunta, já que tem outro objetivo, ajuda a clarear bastante.

O livro é pequeno, de 144 páginas, com vários artigos de pessoas que já leram “O Capital do Século XXI” – escrito pelo economista francês Thomas Piketty, que pôs o tema da desigualdade social na ordem do dia – e decidiram passar adiante uma espécie de “tira-gosto para a leitura do principal”, como escreve Ladislau Dowbor, um dos articulistas. Ainda não consegui ler todos os textos da publicação, mas já no de Dowbor consigo um vento fresco sobre a questão, longe da polarização excessiva que sempre nos põe antolhos. Para Dowbor, a desigualdade persevera e assim seguirá enquanto o sistema econômico/financeiro permitir que os ricos detenham, em paraísos fiscais, entre US$ 21 trilhões e US$ 32 trilhões, segundo o Tax Justice Network, uma rede apartidária que se propõe a estudar e analisar o mundo dos paraísos fiscais para criar compreensão e debate sobre o tema. O britânico “The Economist” arredonda esses dados para US$ 20 trilhões, escreve o articulista.

“Os ricos pagarem impostos não é utópico, é necessário. Na proposta de Piketty para a Europa, seriam 0% para patrimônios inferiores a 1 milhão de euros, 1% para os que se situam entre 1 e 5 milhões e 2% para os acima de 5 milhões. Não é trágico, não deve levar os muito ricos ao desespero”, diz o economista e consultor de várias agências da ONU.

Com esse dinheiro, alguns países membros poderiam sair das mãos dos intermediários financeiros, avalia Piketty, o que seria um bom primeiro passo.

O economista francês não foca a fome, a miséria, mas a desigualdade. No tempo de Betinho, alcançar estudos para acabar com a desigualdade ainda era um plano que podia esperar. Antes, era preciso pôr comida no prato dos pobres. A este chamado, todos atenderam. Ao chamado de Piketty, que mexe verdadeiramente no bolso de quem tem capital em abundância, é mais difícil atender. Vai levar um pouco mais de tempo, presume-se.

Enquanto isso, aqui no Brasil ainda há, segundo a FAO, 3,4 milhões de pessoas que passam por insegurança alimentar, o que representa 1,7% da população brasileira. Para alcançar a meta “zero”, a sociedade civil agora propõe medidas mais sistêmicas. Na carta aberta aos brasileiros e aos candidatos lançada nesta semana pelo Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar Nutricional (veja aqui) há nove itens. Entre eles, a necessidade de um debate que inclua o acesso aos alimentos e padrões de consumo e uma estratégia de prevenção da obesidade, outro mal tão imperativo quanto a desnutrição.
Novos tempos de uma sociedade rica, diversa, que vem aprendendo a assumir e lidar com as privações.

*Imagens: 
Marcia Kranz/CPDoc JB/Divulgação
ONG Nação para Cristo/ Divulgação

http://g1.globo.com/natureza/blog/nova-etica-social/post/betinho-tinha-pressa-para-acabar-com-fome-que-hoje-ainda-afeta-800-milhoes.html

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