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sábado, 8 de novembro de 2014

País vive mais um dilema: agricultura familiar ou agrocombustíveis?



É possível pensar em aumentar a produção de alimentos produzidos por famílias, dando assim oportunidade aos pequenos agricultores, e, ao mesmo tempo, dar força para as monoculturas que podem contribuir para a substituição de combustíveis fósseis por agrocombustíveis? Este é um, apenas um, dos enormes desafios socioambientais que o Brasil vem enfrentando.

Para comemorar o Dia Mundial da Alimentação, no dia 16 de outubro, a ONG ActionAid encomendou um estudo com este foco para o economista e consultor da Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase) Sergio Schlesinger, ao qual eu tive acesso. A principal conclusão do relatório é que o Programa Nacional do Biodiesel, lançado em 2004 com o objetivo de gerar renda para a agricultura familiar, não tem conseguido esse objetivo. O óleo de soja, produzido pelas grandes propriedades do agronegócio, é que tem sido a principal matéria-prima usada para a produção de biodiesel.

Dessa forma, ainda segundo o estudo, a produção brasileira de agrocombustíveis, que no início do século causou muita expectativa, hoje está baseada em duas grandes monoculturas, de soja e cana-de-açúcar. A previsão oficial para a safra 2013/14 de soja é de que a área plantada no país seja superior a 30 milhões de hectares, enquanto a cana-de-açúcar ocupa a terceira maior área cultivada do Brasil, com previsão de que ocupe 9,1 milhões de hectares na safra de 2014/15. São usinas grandes, que deixam aos pequenos produtores apenas a chance de se empregarem numa de suas plantas. 

É bom lembrar que este ano termina a moratória da soja, implementada em 2006, um pacto entre governo, organizações não governamentais e empresas com o objetivo de impedir a comercialização da soja vinda de áreas desmatadas da Amazônia. Com o fim do acordo, a monocultura de soja pode se alastrar ainda mais.

Segundo o relatório, a preocupação do governo brasileiro é que esta elevada dependência da soja “termine trazendo para o mercado de combustíveis a instabilidade das negociações internacionais relativas ao óleo de soja”.

Há outras opções para continuar investindo em agrocombustíveis, e isso fica claro no relatório. Um projeto de lei que institui um Zoneamento Agroecológico da cana-de-açúcar, por exemplo, proibindo a expansão e implantação de novas usinas de etanol ou açúcar na Amazônia, Pantanal e Bacia do Alto Paraguai, biomas sensíveis, está ainda em tramitação no Congresso Nacional. A ideia é evitar que áreas de vegetação primária sejam desmatadas para o cultivo da cana. Segundo o Imazon, instituto de pesquisas da Amazônia, o país tem 24 milhões de hectares de áreas degradadas que podem servir, perfeitamente, para o plantio. Por que não utilizá-las?

Outra sugestão é o etanol de milho. Como nos Estados Unidos, diz o relatório, duas usinas de cana-de-açúcar de Mato Grosso iniciaram recentemente a produção de etanol a partir do milho. “Além do etanol, para cada tonelada de milho utilizada há a produção de cerca de 240 quilos de grãos, com boa demanda no mercado de rações”.

No final do relatório há uma lista de recomendações que, sinceramente, nem precisariam ser feitas se houvesse um pensamento coletivo em prol da segurança alimentar, não apenas no sentido de expandir negócios no setor. Por exemplo: há a sugestão de se proibir o aterramento de terras úmidas e de bacias em áreas de cultivo e pastagem. Isso quer dizer que seria bom que os grandes fazendeiros parassem de jogar terra – às vezes até cimento – sobre nascentes e várzeas. Fazendo isso, eles causam a seca que, por exemplo, está agora afetando São Paulo.

Outra recomendação inacreditável que ainda precise ser feita em pleno século XXI é que seja proibido lançar agrotóxicos por aviões, “de modo a proteger populações, sua produção agrícola e os recursos hídricos vizinhos às áreas de monocultivos e de pastagem”. Há ainda a sugestão de que a venda e uso dos agrotóxicos e sementes transgênicas seja regulamentada e rigorosamente fiscalizada “como medida para proteger os territórios da agricultura familiar que adotam o ciclo de transição para a produção agroecológica dos alimentos”.

Traduzindo a recomendação: o agricultor faz tudo direito, planta sem uso de agrotóxicos para poder participar dos programas do governo que incentivam a agroecologia, como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) e o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar). Mas o fazendeiro vizinho, dos grandes, decide usar o veneno em sua plantação para evitar praga e a droga é tão forte que contamina todo o solo, inclusive a cultura orgânica. As perdas frequentes de produção levam os agricultores a desistirem, como se lê no depoimento de Eliane, do assentamento Roseli Nunes, que fica no município Mirassol d’Oeste, no Mato Grosso, foco do estudo de Sergio Schlesinger:

“Aqui nós temos uma associação que trabalha na produção na horta sem usar veneno. Lutam na Agroecologia e estão organizados, mas a dificuldade é que não podemos conseguir o selo de produção orgânica por causa de todo esse veneno que é jogado no canavial da usina e que vem todo para o assentamento... Hoje estamos acessando as políticas públicas, mas enquanto estamos aqui pensando em um jeito natural de produzir, tem gente que não pensa assim e ainda prejudica a gente.”

Nessa luta dos gigantes contra os pequenos, nem mesmo as boas propostas governamentais têm espaço. O que prevalece é a ganância. Uma pena.

Quando leio sobre esse perigo do uso abusivo dos agrotóxicos, ainda ameaçando a saúde de todos nós, não posso deixar de me lembrar de Rachel Carson, bióloga norte-americana, pioneira na luta contra os venenos impostos à terra e à biodiversidade para conseguir uma produção maior de alimentos. Numa passagem do seu livro “Primavera silenciosa”, que só conseguiu editar em 1962, quase dez anos depois de escrito, Carson conta, de maneira emocionante, o processo de envenenamento dos inseticidas. Reproduzo abaixo:

“Esses inseticidas não são venenos seletivos; eles não isolam uma das espécies de que desejamos nos livrar. Cada um deles é usado pela simples razão de que é um veneno letal. Por conseguinte, ele envenena toda a vida com a qual entra em contato: o gato que é querido por uma família, o gado do fazendeiro, o coelho nas campinas e as cotovias nos céus. Esses animais jamais causaram mal algum ao ser humano. Apesar disso, o ser humano os recompensa com uma morte que não é apenas súbita, mas também horrível.”

A ActionAid faz o papel dela, divulgando o estudo e suas recomendações. O governo federal vem fazendo também um bom papel, com atenção para os pequenos produtores. Medidas como o Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento de Agricultura Familiar), que só nos três últimos meses da safra 2014/15 emprestou R$ 8,3 bilhões em linhas de crédito direto aos agricultores familiares, têm sido responsáveis pelo fato de que, hoje, 70% da comida servida nas mesas dos brasileiros venham dessa produção.

Para que ela seja saudável, porém, precisa ser agroecológica e depende, aí, de vizinhos menos perigosos.

*Foto: Reprodução/EPTV
http://g1.globo.com/natureza/blog/nova-etica-social/post/pais-vive-mais-um-dilema-agricultura-familiar-ou-agrocombustiveis.html

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