Naquele instante, o foco não poderia ser apenas a pobreza. Era preciso dar nome e endereço às vítimas de um sistema perverso que deixava, na época, 32 milhões de pessoas sem ter o que comer. Foi quando, em 24 de junho de 1993, Betinho, que já se transformara na cara do manifesto contra a fome, convocou os brasileiros a assumirem um papel ativo para mudar o vergonhoso cenário. É uma história bonita, que precisava mesmo ser contada de forma perene, por pessoas que participaram daquele momento e estão por aqui, ainda ativas, entendendo que a memória, nesses casos, deve ser refrescada. É essa a principal função do livro “Ação da Cidadania 20 anos”, lançado nesta quinta-feira (25), escrito por Nadia Rebouças. O patrocínio de poderosas corporações para a edição, muito bem feita, com várias imagens belíssimas da época, revela a certeza atual, no mundo das empresas, da necessidade de cuidar da imagem, esse valor intangível.

Betinho chamava empresários, ricos, remediados e a imprensa para fazerem uma espécie de cruzada para levar alimentos a quem não os tinha. Como repórter do jornal “O Globo”, saí às ruas várias vezes para fazer matérias sobre o tema. Ainda me lembro da primeira que fiz para mostrar que a fome não estava só no Nordeste, nos rincões secos da caatinga, mas também aqui no Sul/Sudeste, bem perto de nós. A poucos quilômetros do centro financeiro do Rio de Janeiro, a Avenida Rio Branco, que jorra capital – especulativo ou não –, encontrei um menino de uns 7 anos tomando conta do irmão recém-nascido num barraco de madeira erguido na então Favela do Chatuba. A mãe estava trabalhando ali bem perto, no lixão de Gramacho.
Não preciso nem puxar muito da memória para lembrar o horror que eu senti quando olhei o fogão do barraco e encontrei duas panelas. Uma, com resto de um arroz cheio de mosca. Outra, com o leite que o menino deveria dar ao irmão: estava azedo. O texto da reportagem correu mundo. Alguém do outro lado do Atlântico escreveu (era década de 90, ainda não tínhamos internet, lembra-se?) e adotou as crianças. Final feliz.
E assim foi acontecendo. Betinho batendo à porta, sendo ouvido. Pessoas do mundo artístico davam sua imagem para a campanha, empresas foram chamadas também para mostrar sua responsabilidade social. O quadro foi se mantendo menos aterrador. Era assistencialismo sim, o próprio livro recém-lançado admite isso. Mas foi preciso fazê-lo, a urgência era grande. "Quem tem fome, tem pressa", dizia Betinho.
A campanha foi ganhando outros contornos, outras premências vieram à tona, outras demandas foram sendo denunciadas. “Fome de emprego também mata!”, dizia Betinho. Até o dia 9 de agosto de 1997, quando a Aids, doença estúpida, matou o sociólogo.
“Agora é com vocês!” Esta espécie de última mensagem passou a circular entre aqueles que queriam viver num país menos desigual. Entre eles estava o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que desde o início colaborou com a campanha elaborando um documento de 20 páginas no qual propunha a criação de uma Política Nacional de Segurança Alimentar, prevendo o nascimento do atual Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), que pôs em execução tão logo assumiu seu primeiro mandato, em 2002.
De lá para cá, sim, os miseráveis e famintos foram tendo oportunidades de sair dessa classe, da ralé, e assumir outro status. Oficialmente são a “nova classe média”. Mas para alguns estudiosos, como o sociólogo Jessé Souza, são os batalhadores brasileiros, pessoas que dão duro, de sol a sol, para não caírem de novo na condição em que estavam. Por outro lado, passam a ser vistos pelo mercado como consumidores. É bom, sim, mas se não tiverem cabeça, acabam acumulando um monte de dívidas. Bem, mas isso é outra história.
Coincidentemente, na terça-feira (23), portanto dois dias antes do lançamento do livro que conta a história de Betinho e seu sucessor Maurício Andrade – outro personagem importante nessa trajetória de luta contra a fome e a miséria no Brasil – a Food and Agriculture Organization (FAO), agência da ONU que estuda e pesquisa sobre agricultura e alimentos no mundo, lançou um novo relatório (veja aqui o resumo, em inglês). A boa notícia é que sim, a desnutrição caiu de 18,7% para 11,3% globalmente, e de 23,4% para 13,5% nos países em desenvolvimento no período de 2012 a 2014.
Outra boa notícia é que a América Latina e Caribe fizeram o maior progresso entre as demais regiões. O Brasil está entre os 25 países que não só atingiram a meta proposta pela ONU em 2000, com os Objetivos do Milênio (ODM), a de reduzir à metade a proporção de pessoas com fome, como também reduziu o número absoluto da população nessas condições. Doze países tinham um nível de desnutrição abaixo de 5% entre 1990 e 1992 (entre eles, nossa vizinha Argentina) e foram capazes de mantê-lo assim. E 38 cumpriram a meta dos ODM, de reduzir a proporção de pessoas com fome, sem reduzir o número absoluto.
Com este enorme ponto de interrogação na cabeça, me deparei, lá mesmo na livraria onde houve o lançamento do livro sobre Betinho, com outra recente publicação, do "Le Monde Diplomatique Brasil" e editado pela Editora Veneta, chamado “Thomas Piketty e o segredo dos ricos”. Se não responde totalmente à pergunta, já que tem outro objetivo, ajuda a clarear bastante.
O livro é pequeno, de 144 páginas, com vários artigos de pessoas que já leram “O Capital do Século XXI” – escrito pelo economista francês Thomas Piketty, que pôs o tema da desigualdade social na ordem do dia – e decidiram passar adiante uma espécie de “tira-gosto para a leitura do principal”, como escreve Ladislau Dowbor, um dos articulistas. Ainda não consegui ler todos os textos da publicação, mas já no de Dowbor consigo um vento fresco sobre a questão, longe da polarização excessiva que sempre nos põe antolhos. Para Dowbor, a desigualdade persevera e assim seguirá enquanto o sistema econômico/financeiro permitir que os ricos detenham, em paraísos fiscais, entre US$ 21 trilhões e US$ 32 trilhões, segundo o Tax Justice Network, uma rede apartidária que se propõe a estudar e analisar o mundo dos paraísos fiscais para criar compreensão e debate sobre o tema. O britânico “The Economist” arredonda esses dados para US$ 20 trilhões, escreve o articulista.
“Os ricos pagarem impostos não é utópico, é necessário. Na proposta de Piketty para a Europa, seriam 0% para patrimônios inferiores a 1 milhão de euros, 1% para os que se situam entre 1 e 5 milhões e 2% para os acima de 5 milhões. Não é trágico, não deve levar os muito ricos ao desespero”, diz o economista e consultor de várias agências da ONU.
Com esse dinheiro, alguns países membros poderiam sair das mãos dos intermediários financeiros, avalia Piketty, o que seria um bom primeiro passo.
O economista francês não foca a fome, a miséria, mas a desigualdade. No tempo de Betinho, alcançar estudos para acabar com a desigualdade ainda era um plano que podia esperar. Antes, era preciso pôr comida no prato dos pobres. A este chamado, todos atenderam. Ao chamado de Piketty, que mexe verdadeiramente no bolso de quem tem capital em abundância, é mais difícil atender. Vai levar um pouco mais de tempo, presume-se.
Enquanto isso, aqui no Brasil ainda há, segundo a FAO, 3,4 milhões de pessoas que passam por insegurança alimentar, o que representa 1,7% da população brasileira. Para alcançar a meta “zero”, a sociedade civil agora propõe medidas mais sistêmicas. Na carta aberta aos brasileiros e aos candidatos lançada nesta semana pelo Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar Nutricional (veja aqui) há nove itens. Entre eles, a necessidade de um debate que inclua o acesso aos alimentos e padrões de consumo e uma estratégia de prevenção da obesidade, outro mal tão imperativo quanto a desnutrição.
Novos tempos de uma sociedade rica, diversa, que vem aprendendo a assumir e lidar com as privações.
*Imagens:
Marcia Kranz/CPDoc JB/Divulgação
ONG Nação para Cristo/ Divulgação
http://g1.globo.com/natureza/blog/nova-etica-social/post/betinho-tinha-pressa-para-acabar-com-fome-que-hoje-ainda-afeta-800-milhoes.html
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