(Foto: Estadão Conteúdo)
“O medo em minha vida nasceu muito depois descobri que minha arma é o que a memória guarda dos tempos da Panair
Nada de triste existe que não se esqueça
Alguém insiste e fala ao coração
Tudo de triste existe e não se esquece
Alguém insiste e fere o coração
Nada de novo existe nesse planeta
Que não se fale aqui na mesa de bar”
(Milton Nascimento, “Saudade dos Aviões da Panair”)
O texto divulgado nesta quarta-feira (10 de dezembro) pelaComissão Nacional da Verdade é um texto histórico tão necessário quanto duro e desagradável. Que fala de torturas e torturadores; de ganância e de empresários ambiciosos; de gente que se empenhou para matar a democracia e que ajudou a financiar os verdadeiros matadouros humanos construídos para calar a oposição.
Mas tem também o relato sobre os heróis que não toparam fazer qualquer negócio para se dar bem. É desses que se quer falar.
Milton Nascimento tem uma música incrivelmente linda chamada “Saudades dos Aviões da Panair”, que apareceu no disco Minas, de 1975, no mesmo ano em que o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado no Doi-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna de São Paulo), num canto do quartel do II Exército, no bairro do Paraíso, em São Paulo.
Para quem não conhece esse pedaço hoje supervalorizado da capital paulista, informo: trata-se de um bairro de classe média vizinho ao parque do Ibirapuera, um endereço aprazível. Com sorte ou muito azar, quem naqueles dias estivesse andando pela rua Thomás Carvalhal, quase na esquina com a rua Tutoia, poderia escutar os gritos dos que eram barbarizados ali. Mas não havia para quem pedir socorro.
A Comissão Nacional da Verdade (CNV) concluiu que até dezembro de 1974, 2.148 pessoas haviam sido presas ali para serem interrogadas. Outros 795 presos foram encaminhados de outros órgãos. Somem-se mais 3.276 “elementos [que …] prestaram declarações e foram liberados” e tem-se uma ideia do congestionamento, do entra-e-sai de “suspeitos” naquela esquina. Cinquenta nunca puderam sair dali com vida. Morreram sob tortura.
“Henning Albert Boilesen, o sinistro presidente do então poderoso Grupo Ultra, […] foi um dos elementos civis mais identificados com a repressão naquele período, embora não tenha sido o único. Boilesen ficou conhecido como o personagem que cuidava da arrecadação de recursos para a [… repressão]. Frequentava a sede da entidade, observava os presos políticos ali mantidos, assistia as sessões de tortura. Existem evidências de que tenha participado de algumas sevícias de prisioneiros políticos. Sua participação em atos de tamanha crueldade, crimes contra a humanidade, envolveu inclusive a importação de um equipamento para produzir choques nos prisioneiros políticos torturados. Acionado por um teclado, com a estrutura de um piano, o equipamento aumentava a frequência das descargas à medida que notas mais agudas eram tocadas.”
“Descobri que minha arma é o que a memória guarda dos tempos da Panair”, disse a voz mais linda das Geraes. Pois a memória dos tempos da Panair serve para também desenterrar das sombras os invulgares relatos de heroísmo entre os poderosos.
Anote os nomes de alguns homens que dignificam os homens justos:
José Mindlin (1914-2010), empresário, dono da Metal Leve, bibliófilo e escritor.
Antonio Ermírio de Moraes (1928-2014), empresário, dono do grupo Votorantim.
Fernando Gasparian (1930-2006), empresário, editor e político.
Mario Wallace Simonsen (1909-1965), empresário, foi um dos criadores da Panair do Brasil e da TV Excelsior.
Celso da Rocha Miranda (1917-1986), empresário, foi um dos criadores da Panair do Brasil e da TV Excelsior.
Esses são empresários que, segundo o relatório da CNV, não fizeram como Roberto Marinho, do jornal “O Globo”, que não hesitou em apoiar a conspiração e o golpe de 1964, primeiro, e que, depois, na fase mais dura, apoiou diretamente o porão da tortura, das mortes e desaparecimentos.
Chamando de “dispositivo político-empresarial-militar” a associação entre empresários e tecnoempresários, políticos conservadores e membros da alta hierarquia das Forças Armadas, o relatório da CNV assim descreve a atuação do IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), fundado logo após a posse de João Goulart na Presidência, em 1961: “Em suas primeiras ações, o IPES organizou uma campanha de desestabilização do governo, a partir da produção de uma campanha publicitária que buscava apresentar o cenário político brasileiro como catastrófico, com o próprio presidente da República sendo constantemente acusado de estar interessado em ‘implantar uma ditadura’”.
A tese que se queria “vender” era a de que o plano de Goulart era implantar uma “República sindicalista” inspirada no regime argentino de Juan Domingo Perón.
(Alguém aí se lembrou que o pessoal que hoje faz passeata na Paulista pedindo o impeachment da presidente Dilma Rousseff diz que ela quer inaugurar uma “República Bolivariana”? Ou transformar o Brasil em uma “Nova Cuba”? Pois é. Como disse Milton Nascimento lá atrás: “Nada de novo existe neste planeta”…)
E quem é que fazia parte do IPES?
Entre outros peso-pesados: Celso de Melo Azevedo das Centrais Elétricas de Minas Gerais – CEMIG, Álvaro Borges do Moinhos Rio Grandenses, Henri Burkes do Grupo Gerdau, Felipe Arno do Grupo Arno Indústria e Comércio, Hélio Beltrão e Henrique de Boton do Grupo Mesbla, Henning Albert Boilesen e Pery Igel do Grupo Ultra, Octávio Gouvêia de Bulhões do Grupo Hannah Co., Salim Schama do Grupo Schama, Jonas Bascelo Correa do Banco de Crédito Real de Minas Gerais, Octávio Marcondes Ferraz da Rodger, Valizer e Carbono Lorena, Paulo Ferraz do Estaleiro Mauá, Octávio Frias do Grupo Folha, Antônio Gallotti da Light e Braskan, Flávio Galvão e Júlio de Mesquita Filho de “O Estado de S. Paulo”, Paulo Galvão do Banco Mercantil de São Paulo, Antonio Mourão Guimarães da Magnesita, Lucas Garcês da Eternit do Brasil Amianto e Cimento, Gilbert Huber Jr. das Listas Telefônicas Brasileiras, Haroldo Junqueira da Açúcar União, Israel Klabin das Indústrias Klabin de Celulose, José Luís de Magalhães Lins do Banco Nacional de Minas Gerais, Mário Ludolph da Cerâmica Brasileira, Cândido Guinle de Paula Machado da Docas de Santos e do Banco Boa Vista, José Ermírio de Moraes do Grupo Votorantin, Mário Henrique Simonsen do Banco Bozano Simonsen, Luís Villares da Aço Villares.
A fina flor do camarote vip.
Por sua ousadia em sustentar a democracia ameaçada, Mario Wallace Simonsen e Celso da Rocha Miranda, que juntos detinham o controle acionário da Panair do Brasil, maior companhia aérea do Brasil naqueles anos, foram alvo de perseguição terrível, que levou a Panair à falência.
Igual perseguição também fechou a TV Excelsior, dos mesmos proprietários, pioneira no país na implantação da televisão em cores, sucesso de audiência com novelas consagradas como “Redenção”, “Sangue do Meu Sangue” e “A Pequena Órfã”.
Fernando Gasparian, atuante no ramo têxtil, por meio da América Fabril, e no mercado editorial brasileiro, teve cortado seu crédito junto ao Banco do Brasil logo após o golpe civil-militar, ao qual se opôs. Mas continuou lutando pela democracia e, em 1972, fundou o semanário “Opinião”, o mais influente jornal alternativo, de oposição do regime. Mais tarde, tornou-se deputado na Assembléia Constituinte em 1988.
Poucos personagens no meio empresarial tiveram a mesma coragem.
“Predominou, no período ditatorial, a formação de grandes grupos econômicos no Brasil. A própria liquidação do patrimônio de alguns favoreceu, direta ou indiretamente, grupos que tiveram crescimento significativo no período. No caso da Panair, por exemplo, é importante lembrar que a Varig, do empresário Ruben Berta, assumiu todas as linhas internacionais do país no exato momento em que a concorrente foi fechada pelo governo. De outra parte, a liquidação da Excelsior ocorreria no mesmo contexto em que outro grupo assumia a liderança no ramo das telecomunicações: a Rede Globo de Televisão, do empresário Roberto Marinho, ativo apoiador do regime ditatorial. […] Não é estranho, portanto, que o noticiário jornalístico da Rede Globo tenha sido sempre favorável ao regime ditatorial.”
Mas o caso que mostra como eram íntimas as relações entre a maior parcela do empresariado brasileiro e a face mais dolorosa da Ditadura Civil-Militar foi a criação da Operação Bandeirantes (Oban), surgida em São Paulo logo após a decretação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), que depois, em setembro de 1970, mudaria de identidade, adotando o nome de Doi-Codi.
“Ficou conhecido o banquete organizado pelo ministro Delfim Netto no Clube São Paulo, antiga residência da senhora Viridiana Prado, durante o qual cada banqueiro, como Amador Aguiar (Bradesco) e Gastão Eduardo de Bueno Vidigal (Banco Mercantil de São Paulo), entre outros, doou o montante de 110 mil dólares para reforçar o caixa da Oban. Ao lado dos banqueiros, diversas multinacionais financiaram a formação da Oban, como os grupos Ultra, Ford, General Motors, [além da] Camargo Corrêa, Objetivo e Folha. Também colaboraram multinacionais como a Nestlé, General Eletric, Mercedes Benz, Siemens e Light. Um número incerto de empresários paulistas também contribuiu, já que a arrecadação de recursos contava com o apoio ativo da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), por meio de seu presidente, Theobaldo De Nigris. Nos salões da FIESP, o ministro da Fazenda, Delfim Netto, era sempre visto fazendo palestras aos empresários, em reuniões onde se solicitavam recursos para financiar a Oban.”
Segundo Paulo Egydio Martins, que em 1974 assumiria o governo de São Paulo, “àquela época, levando-se em conta o clima, pode-se afirmar que todos os grandes grupos comerciais e industriais do estado contribuíram para o início da Oban”.
Mas, pelo menos dois empresários se recusaram a colaborar na produção dessa estrutura repressiva, constituindo exceções que honram a humanidade: José Mindlin e Antônio Ermírio de Moraes.
Sua força moral emerge do fato de que eles eram grandemente minoritários em sua recusa. “De acordo com o empresário José Papa Junior […]: é inegável que a participação do Boilesen era mais municipal, enquanto um Amador Aguiar [então dono do Bradesco], sem que ninguém percebesse – sem que haja demérito nisso (sic) –, tinha uma participação nacional e reservada.”
Hoje, definitivamente, é dia de prestar novas homenagens às Asas da Panair e aos imprescindíveis homens de coragem que honraram a humanidade em um período de ossos, dentes e espinhas dorsais fraturadas.
“A maior das maravilhas foi voando sobre o mundo
nas asas da Panair”
YAHOO