Antônio era um sonhador. Tinha mulher, três filhos, morava numa pequena cidade mineira chamada Bocaiuva e estava sempre metendo o pé na estrada, em busca de uma vida melhor para ele e sua família. Um dia descobriu Brasília. Trocou a casa que o sogro dera para a filha por um caminhão, botou a criançada dentro e rumou. Seria o paraíso, mas foi o “outro lado”. O golpe dos militares em 1964 transformou o sonho em inferno para Antônio e sua família. Mas o filho do meio, Luiz Fernando Emediato, o Nando, tirou dessa experiência dura uma oportunidade. E escreveu “O outro lado do Paraíso”, livro autobiográfico, que agora virou filme dirigido por André Ristum. Antônio, seu pai na vida real, ganhou a bela interpretação de Eduardo Moscovis.
Sábado à noite, com um vento gelado da Lagoa atravessando o espaço de cinemas, o filme foi exibido em noite de gala no Festival do Rio, e eu, convidada, estive presente. É uma história emocionante, uma fotografia linda, atores (mirins, inclusive) interpretando muito bem seus papéis. O diretor não usa efeitos especiais, tem a voz de Milton Nascimento para embalar as paisagens mineiras. Não abusa de cenas violentas, mostra apenas as marcas da tortura sofrida pelo protagonista. Por isso mesmo, deixa espaço para reflexões.
Antônio tinha um sonho de liberdade, talvez muito maior do que o de oferecer uma vida mais confortável à família. E foi justamente a liberdade que perdeu, tornando-se mais infeliz e desmotivado, mesmo depois de ter sido solto. A truculência de soldados armados ainda fez outra vítima: a biblioteca da pequena comunidade onde moravam, montada por Luiz Fernando e a professora. O pequeno, que devorava livros como gente grande, foi assim duplamente atacado.
Antônio envergou, mas não se quebrou por inteiro. E continuou sendo o sonhador de sempre, crente em suas utopias. É como se ele soubesse que existe chance de ter um mundo melhor, mas não tivesse as ferramentas para buscar essa boa deriva.
O elenco esteve presente na noite de estreia. Entre os atores, Henrique Bernardes, um menino lindo que faz o papel do irmão de Nando (muito bem interpretado por Davi Galdeano). De terno preto e gravata borboleta vermelha, Henrique parecia ter se materializado, direto daquele cenário de sonhos da telona, e se colocado ali, na minha frente.
Vim pensando em Henrique na volta para casa. Sua ligação real com aquele passado de violência de um governo ditatorial e totalitário retratado no filme que encena é nenhuma, e ele nem imagina o quanto isso é bom. Neste domingo (5), quando acordou e pôs os pés nas ruas, pôde perceber a movimentação que um dia de eleições provoca nas cidades. Fenômeno que muitos de nós só pudemos apreciar na vida adulta por causa de tanto tempo de urnas lacradas pela ditadura no poder.
Por outro lado, o mundo de Henrique não será nada fácil. Se não terá que lutar contra um regime político violento, certamente vai ter dias bem duros, de muita escassez. Água e energia serão o pote de ouro do mundo de Henrique, assim como para nós e Antonio, seu pai na ficção, foi a liberdade.
Envolta nesses pensamentos, recebi por e-mail, de um amigo, o texto de uma entrevista feita pela jornalista e escritora Eliane Brum para o “El País” com o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro e sua mulher Debora Danowski, que acabam de lançar o livro “Há mundo por vir? – Ensaio sobre os medos e fins” (Editora Cultura e Barbárie). Foi nutriente certeiro para as minhas reflexões pós-filme.
Na entrevista, o casal comenta sobre todas as privações que a humanidade vai enfrentar mais e mais daqui por diante devido à escassez dos recursos naturais (vide a falta de água em São Paulo). E diz que os índios podem ter a capacidade de ensinar os brancos a viverem “melhor num mundo pior”. Leiam o trecho:
“Os índios podem nos ensinar a viver com pouco, a viver portátil, e a ser tecnologicamente polivalente e flexível, em vez de depender de megamáquinas de produção de energia e de consumo de energia como nós. Quando eu falo índio é índio aqui, na Austrália, o pessoal da Nova Guiné, esquimó... Para mim, índio são todas as grandes minorias que estão fora, de alguma maneira, dessa megamáquina do capitalismo, do consumo, da produção, do trabalho 24 horas por dia, sete dias por semana. Esses índios planetários nos ensinam a dispensar a existência das gigantescas máquinas de transcendência que são o Estado, de um lado, e o sistema do espetáculo do outro, o mercado transformado em imagem. Eu acho que os índios podem também nos ensinar a aceitar os imponderáveis, os imprevistos e os desastres da vida com o 'pessimismo alegre' (expressão usada originalmente pelo filósofo francês François Zourabichvili, com relação a Deleuze, mas que aqui ganha outros sentidos). O pessimismo alegre caracteriza a atitude vital dos índios e demais povos que vivem à margem da civilização bipolar que é a nossa, que está sempre oscilando entre um otimismo maníaco e um desespero melancólico. Os índios aceitam que nós somos mortais e que do mundo nada se leva.”
É sobre o “pessimismo alegre” que quero me deter. Trata-se de uma expressão que remete a viver o presente, o que é muito difícil para todos nós. Ou nossos pensamentos vão para um futuro, acreditando que ele será melhor do que os tempos que estamos vivendo hoje (como faz Antônio), ou fincam as raízes no passado e de lá não saem, fazendo do nosso dia a dia um mar de ressentimentos. Os índios, como ensina Eduardo Viveiros de Castro, são pessoas que, de fato, vivem no presente e no melhor sentido possível, enfrentando as dificuldades que ele apresenta, mas sem imaginar “que se tem poderes messiânicos, demiúrgicos de salvar o planeta”, disse o antropólogo à jornalista do “El País”.
A “festa da democracia”, como são chamadas as eleições, acontece de quatro em quatro anos. É quando o cidadão comum se reveste de poder e vai para as urnas “mandar” no destino dos políticos. Seria bom se fosse também um momento para pensar melhor, não só em todos os interesses envolvidos nas eleições, como naquilo que não está sendo dito pelos candidatos e naquilo que deveria estar sendo dito. O futuro do país, do mundo, não depende só de indicadores econômicos ou sociais. Depende, e muito, de um olhar criterioso para o que vem sendo tirado da natureza para ajudar a manter esses índices.
“O ambiente, o clima, a atmosfera estão mudando muito mais depressa do que o capitalismo”, afirma Eduardo. Na entrevista, o antropólogo se permite sonhar um pouco e reafirma uma teoria que eu, como repórter, venho ouvindo recorrentemente de outros especialistas que tenho lido ou entrevistado. Ele fala em “pequenos bolsos alternativos de deserção”, uma espécie de “indianização”, que luta pelo mínimo de autossuficiência local. “Com ênfase no município, na comunidade, nos governos locais, nos arranjos locais, no transporte de curta distância, no consumo de produtos produzidos não muito longe de casa”, acrescenta ele.
De qualquer forma, os primeiros a sofrer os reveses das mudanças climáticas serão os pobres. Mas há uma dobra interessante no pensamento de Eduardo Viveiros. Segundo ele, os pobres poderão ser, também “os primeiros a se virar”.
Henrique vai ter, talvez, tanto trabalho quanto seu pai na ficção teve para viver. Mas em liberdade. Isso já será um ganho.
*Fotos: Divulgação e divulgação/Funai
http://g1.globo.com/natureza/blog/nova-etica-social/post/como-viver-melhor-em-um-mundo-pior.html
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