A ESCRITA DOS NÚMEROS
A psicolingüista e psicóloga argentina Emília Ferreiro, radicada no México, professora do Departamento de Investigações Educativas do Instituto Politécnico Nacional do México, esteve em São Paulo no mês passado e realizou duas palestras para divulgar os resultados de suas mais recentes pesquisas. O Diário na Escola dá continuidade à pagina da semana passada e prossegue, hoje, divulgando os principais tópicos abordados pela pesquisadora em sua segunda palestra: “Novas investigações sobre a psicogênese da língua escrita e suas repercussões na prática escolar”, que falou sobre como as crianças em fase de alfabetização pensam a escrita dos números.
Emília Ferreiro iniciou sua fala analisando a questão recente e atual da guerra entre EUA e Iraque, pela ótica da violência não contra vidas, mas contra a cultura. Ela afirmou que, durante anos, deu palestras abordando e focando seus argumentos no assunto para o qual foi contratada para tratar, sem falar sobre o que acontecia no mundo. Porém, desta vez, ela afirmou que seria diferente: “O que está se passando hoje tem relação com nossa história, tem a ver com a história do ocidente, com cultura e tem a ver com a história dos números que irei falar hoje para vocês que são os números arábicos. Arábicos porque vieram para o Ocidente pelas mãos da cultura árabe. Isso que vou abordar hoje – como as crianças que estão iniciando seu processo de alfabetização pensam a escrita dos números – tem que ver com os acontecimentos dramáticos que estão acontecendo que é a destruição de uma cidade de cultura. A cidade de Bagdá é um berço de cultura assim como Roma, Paris ou Londres. Em Bagdá, foi conservada a cultura grega, traduzidos aspectos de geometria, de filosofia, de medicina, muito utilizados pelas universidades medievais. Durante cinco séculos (de VIII a XII) o povo de língua arábica preservou a ciência grega e recebeu aqueles que foram expulsos do Ocidente, deste Ocidente intolerante. Bagdá, durante anos, foi considerada a cidade mais desenvolvida e mais povoada do mundo
civilizado, considerada uma cidade luz, muito antes de Paris. No século X, Bagdá era a cidade mais cosmopolita do planeta. Dois séculos antes do Ocidente conhecer o papel, em Bagdá já havia uma fábrica. A cidade possuía universidades, bibliotecas, laboratórios, observatórios confundidos pelos ocidentais como os palácios das Mil e Uma Noites, hoje vistos apenas como demonstrações de poder e dominação, mas que eram, em muitos casos, lugares de cultura. Não conheceríamos Aristóteles se ele não tivesse sido traduzido, conservado e levado à Península Ibérica – neste lugar sensacional onde fizeram a revolução do latim de tal maneira que os textos clássicos de nossa cultura passaram por muitas línguas antes de chegar ao latim. A semântica do latim é a forma de escrita cuneiforme da qual deriva a escrita alfabética que hoje temos. No Iraque, há 10 mil sítios arqueológicos catalogados. Em 1954, foi assinado um convênio de patrimônio histórico em caso de conflito armado. Os EUA não deram seu aval. Portanto, hoje, estão acontecendo fatos relevantes e reveladores para qualquer pessoa interessada pelo estudo da escrita. Estão destruindo uma cidade, graças a qual a cultura grega chegou ao Ocidente e propiciou o avanço de todos os outros povos.”
Após a longa explicação, Emília novamente apresentou o tema de sua última pesquisa, ressaltando que se trata de uma questão importante, mas que não pode ser abordada em seu trabalho sobre a psicogênese da língua escrita: como as crianças, no período inicial da alfabetização, pensam as letras e os números?
Apresentação da pesquisa – No começo da alfabetização, quando as crianças começam a entrar em contato com o universo gráfico, entre 3 a 5 anos, dependendo do meio em que vivem, elas descobrem não somente as letras como, também, os números, sem saber, de início, que há diferenças entre eles. “Sem saber por que alguns se chamam letras e alguns se chamam números, já que têm formas tão parecidas”.
A pesquisa se concentrou na descoberta do que permite às crianças diferenciar letra de número. Emília partiu do princípio que não poderia ser o desenho, a forma, já que os dois, letras e números, se compõem dos mesmos traços gráficos. Todos se compõem de linhas horizontais ou verticais, retas ou curvas. Também não seria o contexto já que os dois podem aparecer juntos, como acontece nas placas dos carros, nos calendários, nas cédulas de dinheiro. As crianças, ao iniciarem seu processo de alfabetização, devem, de alguma forma, lidar com esses dois universos: números e letras.
A pesquisadora argentina disse acreditar ser importante pesquisar como as crianças que estão iniciando seu processo de alfabetização tratam esses dois universos e “como fazem para organizar estes dois objetos”. Geralmente, as escolas apresentam aos alunos que os números servem para contar e as letras para escrever. Pensando desta forma é difícil explicar qual a função do zero, já que este não serve para contar. “Não contamos desde o zero”, disse. Para ilustrar este raciocínio, Emília contou que, certa vez, ao entrevistar uma criança, questionou a respeito da função do zero e teve como resposta: “os zeros não servem para nada. Só servem para ir com os outros, sozinhos eles não servem para nada”. Portanto, para a educadora, o zero é um problema interessantíssimo que deve ser investigado. Emília relatou que algumas crianças, ao começar a trabalhar com números romanos, questionam o professor sobre o uso do zero e, algumas vezes, só depois deste tipo de questionamento é que os professores se dão conta que não existe zero em número romanos. Ela esclareceu que o zero chegou no Ocidente a partir da Índia,
através dos árabes, com os números arábicos, assim como a escrita.
Na escola, as crianças estão em contato e são solicitadas a ler letras e números. “É interessante verificar que nós adultos, na escola e na sociedade, empregamos o mesmo verbo quando solicitamos que as crianças leiam letras ou números – ‘vamos ler esta palavra, vamos ler este número‘. Isso pode fazer parecer que se lê da mesma maneira letras e números, mas na verdade lemos de forma totalmente diferente, são sistemas completamente diferentes”, disse.
As letras fazem parte de um sistema alfabético, que trata de representar variações sonoras mínimas, que permitem diferenciar, por exemplo, palavras como som e tom, mão e pão. “Os números não tem nada a ver com sonoridade. Se escrevo 5 e peço que pessoas de diferentes partes do mundo leiam, terei: cinco, five, cinque... E isso não é uma tradução. O que está escrito não é o nome do número, mas a idéia de um conjunto de cinco elementos. Por outro lado, se tenho escrita a palavra casa e leio house, estou traduzindo; ali não está escrito house, está escrito casa em uma língua particular”.
Na língua alfabética, há diferença mínima e significativa na pauta sonora, na escrita de números a pauta sonora é irrelevante porque a escrita dos números não é alfabética, é ideográfica – no caso dos números não há tradução. Ler um sistema alfabético e ler um sistema ideográfico são coisas diferentes.
É possível produzir linguagem frente a uma marca de um número, como se pode produzir linguagem frente a um conjunto de letras, porém nem toda a produção oral produzida é similar uma a outra. O problema parece ser complicado porque se usa o mesmo verbo ler para formas diferentes, para dois sistemas completamente distintos.
A sociedade propõe o uso cultural das duas formas, letras e números, com uma certa indiferença relativa ao contexto que compartilham. A pesquisa de Emília Ferreiro, veio então, verificar como as crianças liam números em contextos nos quais eles não servem para contar, como por exemplo os números das placas dos carros, ou o número da linha de ônibus. Casos em que os números funcionam como nomes. “Ter uma linha de ônibus número 42 não significa que haja necessariamente uma linha que venha antes, 41, ou uma que venha depois, de número 43. Ou se tenho linhas numa seqüência numérica, isso não significa que a linha 43 vá mais longe que a linha 41, por exemplo, ou que uma leve mais passageiros que a outra”.
Encaminhamento e resultados – Tradicionalmente, nas pesquisas sobre como as crianças aprendem a escrever, pergunta-se: “que palavra você sabe escrever? Escreva”. Emília e sua equipe mudaram a pergunta para ver como as crianças se comportavam, elas perguntavam da seguinte forma: “Que palavras você não sabe escrever? Escreva”. Com isso, observaram que as crianças inventavam um outro modo de escrever, usando toda a informação disponível. Decidiram transpor essa mudança, também, para a pesquisa de escrita de número, solicitando, então, que as crianças escrevessem não números pequenos, como é um costume pela pesquisa, mas números maiores como 36, 94.
A pesquisa realizada não fala do conceito de números, procedimentos de contagem, aspectos ordinais/cardinais. Fala sobre os números como parte da língua. “Os números são parte da linguagem. Quatorze, quinze, significam um conjunto de vários elementos, mas são palavras no singular”, afirmou. Para analisar os números quanto à linguagem, foi importante considerar que eles podem ser classificados em opacos, ou não transparentes, e números transparentes. (Números transparentes são aqueles que dizem exatamente o que são, como aqueles a partir de 16, são previsíveis, possíveis de antecipar. Já, ao contrário, os números opacos são aqueles que não possibilitam antecipações, como o é onze, treze, doze...).
Durante a pesquisa, analisou-se que, ao serem ditados números transparentes – aqueles a partir do 16 –, as crianças colocam primeiro o algarismo que conhecem, “por exemplo, quando lhes é ditado 36 colocam primeiro o 6. Puderam observar que as crianças pré-silábicas colocam o número conhecido primeiro – neste caso o 6 –, já as silábicas colocam um algarismo qualquer para representar a parte desconhecida e em seguida, o algarismo 6; em geral o algarismo colocado primeiro é o 1 e o zero”.
Nos números transparentes, há uma parte conhecida e uma parte desconhecida. Para esta parte desconhecida, as crianças usam um curinga: 1 ou zero, por considerarem estes os “menos números” de todos os números. Analisar a posição em que as crianças colocam o número curinga é muito importante e diz muito sobre como e o que pensam ao escrever. “A diferença de posição
do curinga apresentada pelos pré-silábicos e os silábicos não é pouca coisa, pois um présilábico
não pode ler 36 se escrevessem de outra forma, já que crianças com esta hipótese, ao ler, apontariam o 6 para ler “trinta” e apontariam o zero para ler o “seis”. Os silábico não utilizam a mesma escrita numérica por não terem a mesma hipótese. “Se colocassem primeiro o número que conhecem, teriam um problema na leitura, pois os silábicos não lêem os números por sílabas (vin - te - e -cin - co), mas por morfemas (vinte - cinco)”.
A pesquisa chegou a resultados interessantes:
✔Nenhuma criança misturou letras e números. Escrevem nomes com letras e números com numerais gráficos.
✔Quanto a posição que escrevem o número conhecido: pré-silábicos – todos escrevem à esquerda; silábicos – poucos escrevem à esquerda, alguns escrevem à esquerda e depois mudam e muitos escrevem à direita; silábicos-alfabéticos e alfabéticos – vão aumentando cada vez mais a freqüência com que colocam o número conhecido à direita.
✔Os números são mais fáceis que as letras porque se lê ideograficamente, porque as formas são limitadas – só há 10 formas: 0 a 9 – e porque não há variação tipográfica – não há número cursivo. Emília falou da tese de doutorado de Monica Alvarado, que supervisionou, e na qual foi possível verificar que:
✔Os pré-silábicos, em estágios mais avançados, ao escreverem palavras não analisam a sonoridade, mas ao escreverem números, sim. Em números transparentes “compostos”, por exemplo dezenas, onde uma parte é conhecida e outra desconhecida, resolvem primeiro a parte conhecida e depois a outra. Ao ler o que escreveram, não lêem analiticamente, então nunca descobrem que o algarismo está mal colocado.
✔Os silábicos já têm uma ordenação da parte conhecida e não conhecida. A parte conhecida fica à direita. Na escrita dos números, resolvem a parte conhecida e deixam a desconhecida para depois. A leitura de números se dá pela análise de morfemas e não silabicamente.
✔Os silábicos-alfabéticos e alfabéticos ao escreverem palavras ficam muito atentos às relações/correspondências qualitativas, as letras devem corresponder. Isso se reflete na escrita dos números. À medida em que os números crescem o uso de curingas é reduzido. Aqui aparecem números espelhados, que crescem à medida em que desaparecem os curingas. A isso se agrega o conhecimento social de 30, 40, 50... Crianças com essas hipóteses sabem, por exemplo, que o 10 do 18 tem um ideograma específico, então escrevem 108. Isso não significa que entenderam a natureza aditiva: 10 + 8 = 18.
Conclusão – Emília destacou que sua apresentação não deve ser transposta para a sala de aula. Deve ser vista como parte de uma pesquisa que procurou buscar explicações para o fato de como as crianças, que estão iniciando seu processo de alfabetização, pensam as escritas dos números, do ponto de vista da língua e não da matemática. “Uma coisa são as letras, outra coisa é a combinação das letras. Uma coisa são os números, outra é a combinação dos números. A preocupação da pesquisa foi pensar como as crianças pensam para escrever essas combinações”.
A pesquisadora disse acreditar que a escrita matemática está muito amarrada na escrita. Para ela, sua pesquisa lhe rendeu novos inimigos que diziam “pelo menos Emília não fala de matemática”. Outra vez ressaltou que não está falando de matemática, mas de língua e, em língua, escrevem-se números. “Isso é parte da língua ainda que tenha conceito matemático. As crianças não têm obrigação de saber distinguir isso, elas têm o direito de misturar tudo. A professora sim, tem obrigação de saber como distinguir”.
* fonte: DIÁRIO DO GRANDE ABC - DIÁRIO NA ESCOLA (02/05/2003)
Nenhum comentário:
Postar um comentário