Não é de hoje que o mundo lança olhares de admiração, e ainda uma ponta de curiosidade, ao uso de etanol como combustível veicular no Brasil. Antes de ser implementado o ProÁlcool, no entanto, já haviam experiências anteriores tanto a nível nacional quanto internacional. Até mesmo o Ford Modelo T, lançado em 1908, podia operar com o etanol de milho feito em destilarias de fundo-de-quintal por fazendeiros americanos. Na falta de cevada, principal matéria-prima do malte que origina o whisky, a produção de uma aguardente de milho ganhou popularidade nas terras do Tio Sam, e ainda hoje pode ser encontrada como base para coquetéis e pode chegar a um teor alcoólico de 96%, o mesmo do etanol hidratado comercializado nos postos brasileiros. Para efeitos de comparação, a cachaça normalmente é estandardizada a 40% de teor alcoólico.
Os militares tiveram motivos perfeitamente justificáveis ao contexto da época para apostar no etanol, ainda que outras opções que também estavam ao alcance das mãos tenham sido negligenciadas. A manipulação de um combustível líquido costuma ser muito mais fácil que a de um gasoso, e as alterações necessárias para "alcoolizar" os veículos que dominavam o mercado puderam ser implementadas rapidamente e com um impacto relativamente baixo no custo (aliviado pela menor incidência de IPI em comparação a um similar movido a gasolina), mas nem tudo são flores: apesar de ter levado a uma significativa redução nas importações brasileiras de petróleo e proporcionar um interessante incremento no desempenho, o etanol apresenta uma corrosibilidade maior que a da gasolina, havendo também dificuldades associadas à partida a frio e estabilização da marcha-lenta, e ainda o rendimento em km/l inferior ao da gasolina numa ordem de 30%. Não se pode esquecer as polêmicas em torno do uso de terra agricultável na produção de matérias-primas para combustível veicular ao invés de gêneros alimentícios, apontadas até mesmo por figuras renomadas no cenário da indústria automobilística como o saudoso João Augusto Conrado do Amaral Gurgel.
Outro combustível que passou a ter alguma importância a nível mundial durante o período dos primeiros choques do petróleo foi o gás natural, já usado para fins automotivos na Itália e na Suécia desde o período entre-guerras. Embora as primeiras aplicações do gás natural como combustível automotivo no Brasil tenham ocorrido já nos anos 80, mais restritas ao eixo Rio-São Paulo e apenas para caminhões, ônibus, táxis e outros veículos de serviço, a partir de 96 houve uma liberação geral do gás também para automóveis particulares, mas apenas a partir de 2001 com o Gasoduto Bolívia-Brasil que começou a ganhar espaço em âmbito nacional, continuando no entanto mais popular em centros urbanos e com pouca presença no interior. Ao contrário do gás liquefeito de petróleo, mais conhecido como GLP ou "gás de cozinha", derivado do fracionamento do petróleo e composto principalmente por propano e butano, o gás natural tem como principal componente o metano, e ocorre naturalmente tanto em bolsões isolados como de forma residual em bacias petrolíferas. Também não depende de refino para ser aplicado diretamente como combustível veicular, embora ficasse mais limitado ao uso em equipamentos estacionários nas próprias bases de extração ou simplesmente queimado aleatoriamente. Outra diferença se dá na forma de armazenamento: enquanto o GLP é acondicionado a uma pressão de 15bar (225lb/pol³) e na fase líquida, com o gás natural o padrão vai de 200 a 240bar (3000 a 3600lb/pol³) e continua na fase gasosa, tendo como nome comercial mais comum no exterior "gás natural comprimido" (GNC). Mais recentemente a tecnologia de liquefação criogênica (por congelamento a temperaturas extremas como -136°C) do gás natural, dando origem ao GNL e anteriormente mais aplicada como meio de aumentar a capacidade de transporte em navios gaseiros, começou a ganhar espaço em veículos comerciais pesados (caminhões e ônibus) nos Estados Unidos e na Europa, mas ainda esbarra nos altos custos para armazenamento a longo prazo e protocolos de segurança tão rígidos quanto os aplicáveis ao hidrogênio.
Sob o ponto de vista da "sustentabilidade" tão aclamada hoje, e da busca por fontes de energia renováveis para substituir os combustíveis fósseis, o etanol poderia parecer uma opção claramente superior, mas há algumas ressalvas que podem ser feitas: tendo como principal componente o metano, gerado a partir da decomposição de qualquer matéria orgânica, o gás natural não depende exclusivamente de reservas finitas. Até a vinhaça, um resíduo da produção de etanol (que mesmo se tornando menos importante como combustível veicular ainda é de suma importância em aplicações na indústria química), pode ser tratado em biodigestores junto com outros materiais orgânicos num biodigestor para gerar gás combustível e fertilizante agrícola. O chamado "biogás", também mencionado como "biometano" quando passa por processos de purificação, é abundante e pode ser recuperado em aterros sanitários e estações de tratamento de esgoto para uso como combustível veicular, tendo a viabilidade econômica já comprovada tanto em aplicações experimentais como uma frota de Fiat 147 da Sanepar em Londrina quanto comerciais como em alguns ônibus que rodavam em São Paulo na época que a prefeitura estava nas mãos da Luíza Erundina. Já chamou a atenção até de grandes players do mercado internacional de petróleo como Abu Dhabi, onde parte da frota de veículos de serviço público já foi convertida para rodar com GNC, e há planos em andamento para promover a recuperação do biometano na principal estação de tratamento de esgoto do emirado.
Outro caso que merece algum destaque é a Venezuela, onde um decreto do ditador Hugo Chávez em abril de 2009 instituiu uma cota mínima de 50% de todos os veículos 0km (tanto fabricados localmente quanto importados) que deveria ser composta de modelos configurados para operar tanto com gasolina quanto gás natural, de modo a diminuir os impactos dos pesados subsídios à gasolina sobre as contas públicas, e ainda liberar gasolina e óleo diesel para exportação a preços internacionais de mercado. O mercado venezuelano tem um volume de vendas menor que o brasileiro, e mesmo assim alguns modelos que hoje no Brasil só são disponibilizados em versões "flex" movidas a gasolina e etanol como o Toyota Corolla são vendidas na Venezuela prontas para operar com gás natural. Cabe salientar que a PDVSA, estatal perolífera local, subsidia em 100% os custos dos kits de conversão (e respectiva instalação quando feita em veículos usados), valendo-se de uma menor venda de gasolina a preços fortemente subsidiados para recuperar o investimento.
No Brasil o biogás pode trazer uma perspectiva de estender a disponibilidade do gás a regiões mais distantes, oferecendo uma alternativa com custo mais competitivo em relação à gasolina fora das regiões produtoras de etanol (reduzindo o custo de processos logísticos e a incidência de ICMS), e também é muito útil para reforçar a segurança energética nacional ao diminuir a importância da Bolívia no fornecimento de um combustível que já pode ser considerado essencial por ter se firmado como o favorito dos taxistas e de outros operadores comerciais em veículos que não possam usar óleo diesel em função da capacidade de carga inferior a uma tonelada e acomodação para menos de 9 passageiros além do motorista que não tenham tração 4X4 com reduzida - atualmente apenas veículos que carreguem no mínimo uma tonelada ou 9 passageiros, ou tenham tração 4X4 com reduzida, podem ser oferecidos com motores Diesel no mercado brasileiro. A bem da verdade, 40% do PIB boliviano depende da exportação de gás natural para o Brasil.
A vocação agroindustrial brasileira ainda é um dos motores da economia nacional, e proporciona grandes quantidades de material para ser usado na produção de biogás, desde resíduos de origem vegetal quanto dejetos gerados por animais de criação e restos do abate e processamento industrial de carnes. Pode-se tomar o exemplo da Alemanha, que assumiu a liderança mundial na tecnologia do biogás na década de 50 e ainda hoje inspira a maior parte dos projetos para uso desse combustível a nível mundial. Cabe destacar também que o etanol, além de ter a produção mais centralizada, fica geralmente restrito ao uso de matérias-primas vegetais, não apenas a cana de açúcar mas também o milho, a beterraba açucareira e o sorgo, e que o chamado "etanol de segunda geração" produzido a partir de materiais com menos açúcar e mais celulose (lascas de madeira, palha, sabugo de milho, entre outros) ainda esbarra nos custos e no domínio da tecnologia ainda mais limitado.
Daniel Girald, gaúcho de Porto Alegre, mais conhecido como Kamikaze, estudante de Engenharia Mecânica com alguma experiência anterior em mecânica automotiva e de motocicletas, contribuindo no Auto REALIDADE quinzenalmente (na primeira e na terceira sextas-feiras de cada mês) para abordar temas técnicos escolhidos mediante sugestões de leitores, ou aleatoriamente entre as novidades mais destacadas no mercado como na estréia da coluna. Defensor ferrenho da liberação do uso de motores a diesel em veículos de qualquer espécie.
http://autorealidade.blogspot.com.br/2015/01/biogas-um-futuro-mais-promissor-que-o.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário