JOSÉ AUGUSTO BARROS
No Rio Grande do Sul, ela é conhecida como gaita, mas seu nome oficial é acordeão. Desde a chegada dos imigrantes alemães e italianos por aqui, no século 19, gera fascínio e encanta os mais diversos públicos. Berço de gênios do instrumento, como Honeyde Bertussi, Luiz Carlos Borges e Edson Dutra, o Rio Grande agora vê um outro mestre do acordeão, Renato Borghetti, levar adiante um projeto que incentiva a formação de talentos do gênero, com a Fábrica de Gaiteiros.
Retratos da Fama homenageia este instrumento que está intimamente ligado à música gaúcha, conta sua história e ouve quatro grandes representantes do gênero para entender o fascínio que a gaita exerce no mundo da música nativista. E dê-lhe, gaita!
“Só com a gaita se faz o fandango gaúcho”
Um dos mais respeitados e premiados acordeonistas do país, Edson Dutra, líder do grupo Os Serranos, só tem boas lembranças quando o assunto é gaita:
_ Para mim, a gaita tem uma excepcional importância, pois me vejo ligada a ela deste os sete anos, quando minha mãe, dona Cely, me matriculou na Escola de Música Carlos Gomes, de Bom Jesus, na Serra. Sem influência nenhuma, por pura insistência dela, para que não tivéssemos o tempo ocioso, embora meu pai (Helois Dutra) fosse contra. Depois, ao me ver tocar pela primeira vez, ele virou o meu maior fã e apoiador. Devo isso a eles.
Para Edson, instrumento é a base da música gaúcha
Aos 15 anos, veio a profissionalização, com a gravação do primeiro disco. De lá para cá, o sucesso com Os Serranos:
_ E só alegrias com a minha gaita! Com ela, fiz muitos amigos, tive a projeção como artista reconhecido no país e até no Exterior. Mais do que isso, com a minha gaita, conheci minha prenda (Raquel) e foi tocando minha cordeona que consegui ter uma vida digna, constituindo uma linda família.
Para o músico, a gaita é a base da música tradicionalista, o instrumento mais completo.
_ Só com a gaita, se faz a festa e um fandango gaúcho _ explica Edson, que, na próxima terça-feira, participa do IV Encontro Internacional de Acordeonistas, como solista, em São Bento do Sul, em Santa Catarina.
Nem só de música nativista vive a gaita
Destaque da nova geração da música gaúcha e do acordeão, Samuca do Acordeon relembra que começou a tocar o instrumento quando era pequeno, “porque foi aprender a jogar futebol, mas não deu certo”:
– Então, o pai me colocou na aula de gaita. E até hoje, é uma cachaça!
No começo da carreira, tocou em grupos gaúchos, como o Tchê Guri e outros de baile. Atualmente, faz um trabalho mais voltado para o samba e o choro, tendo lançado, inclusive, um DVD do gênero.
– É um trabalho de resgate do instrumento, pois o acordeão também foi sempre muito usado para tocar samba, choro e bolero – afirma Samuca, 31 anos.
O trabalho do músico, aliás, já ultrapassou fronteiras, pois seu DVD já foi lançado na Suíça e na França:
– É a música sem fronteiras!
Desde pitoco, sabia que a gaita era o caminho
Estudioso de música e nome consagrado, levando sua gaita pelo Brasil e em festivais na América do Sul, Luiz Carlos Borges ganhou sua primeira gaita ainda pequeno, aos cinco anos, do pai, Vergilino:
– Durante duas semanas, teve muita paciência, me mostrando uma vanera bem simples, que hoje eu chamo de “vanera do meu pai”, com uma gaitinha de botão, a mesma que o Renato (Borghetti) tocava no começo de sua carreira. Bebi daquela cachaça que é a gaita e nunca mais larguei – relembra o músico.
Borges tem um carinho extremo pelo instrumento que lhe trouxe fama e lhe deu a oportunidade de ganhar o mundo com sua música:
– Hoje, eu vejo a gaita gaúcha como um símbolo, abaixo um pouco de churrasco e chimarrão. Mas não é possível falar em música gaúcha sem falar em gaita.
Dá para acreditar que a gaita já esteve “fora de moda”?
Borges comenta que, durante os anos 1960, época do estouro na Jovem Guarda no Brasil, passou por poucas e boas no Rio Grande do Sul, por conta da paixão pelo instrumento e pela música nativista:
– Hoje, não só vivo da gaita, mas sou um defensor deste instrumento, para que não desapareça. Naquela época, para ser o moderninho da época, tinha que ouvir, inclusive aqui no Rio Grande do Sul, Roberto Carlos, Erasmo (Carlos) e Wanderléa, aquela turma da Jovem Guarda. Com gaita, nem namorada arrumava.
Nesta época, como lembra Borges e corrobora o especialista Terson Praxedes, pesquisador do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore (IGTF), por incrível que possa parecer, a gaita teve seu momento de baixa no Estado. No final dos anos 1970 e começo dos anos 1980, com a força de festivais como a Califórnia da Canção Nativa, em Uruguaiana, ela voltou ao posto de rainha da música gaúcha.
– O público jovem voltou a se interessar pelo instrumento – atesta Terson.
Um divisor de águas na música gaúcha!
Esta é a definição para o instrumento de Renato Borghetti, uma das lendas da gaita no Rio Grande do Sul e idealizador de um dos projetos mais bacanas da música gaúcha, o Fábrica de Gaiteiros. Especialista na gaita-ponto, ou acordeão diatônico, nome oficial, Borghetinho, como é conhecido, começou a trilhar a paixão pelo instrumento quando tinha 13 anos, e ganhou uma Hering de oito baixos.
– Quando comecei a fuçar, vi que saía som! Eu fui tirando de ouvido – relembra.
Além de difundir a gaita no Brasil, Borghetti é um dos pioneiros em levar a nossa música para o Exterior. Em 2000, ele tornou-se atração frequente em festivais e em teatros da Europa.
– O pós-show é o mais legal! Explicamos que o Rio Grande do Sul é um outro Brasil, onde faz frio e neva. Eles têm a visão do Brasil tropical, do samba – comenta o músico.
Gaiteiros do futuro
Com aulas gratuitas em sete centros de aprendizagem diferentes, a Fábrica de Gaiteiros é uma grande esperança do surgimento de novos talentos. Desde 2010, o projeto de Renato Borghetti produz o acordeão diatônico, a popular gaita de oito baixos, em Barra do Ribeiro, e investe no projeto, com aulas gratuitas para alunos de sete a 15 anos, com o apoio da Celulose Riograndense.
– É uma baita alegria proporcionar o acesso a um instrumento tão fascinante. Me dá muito prazer. A ideia é oferecer o mais difícil, e mais caro, que é o instrumento. As gaitas ficam à disposição dos piás, eles podem levá-las para casa, num sistema de rodízio, claro, estilo biblioteca – diz Borghetti, orgulhoso.
O projeto Fábrica dos Gaiteiros em números
- Atende entre 180 e 190 adolescentes, de sete a 15 anos, em sedes em Porto Alegre (na Capital, são duas), Guaíba, Barra do Ribeiro, Tapes, São Gabriel e Bagé.
- A confecção dos instrumentos é realizada com madeira certificada de eucalipto, proveniente de plantios renováveis.
- As inscrições estão abertas e as aulas são gratuitas. A única condição é de que a criança esteja matriculada e cursando ano letivo normal em escola pública ou particular. Para contatar os professores, acesse o site fabricadegaiteiros.com.br ou ligue 3335-1824.
- As aulas estão abertas para meninos e meninas de sete a 15 anos.
A origem do acordeão
- Por volta de 2.700 a.C., os chineses desenvolveram um instrumento no qual o ar fazia vibrar palhetas produzindo um som, aproveitando a acústica da boca. Foi chamado Tcheng ou Cheng, que viria a ser a origem do acordeão.
- Em 1822, o austríaco Cyrillus Demian constrói o primeiro acordeão como conhecemos hoje, um diatônico ou gaita de boca. O instrumento foi patenteado por Cyrillus em seis de maio de 1829, em Viena, na Áustria, e o primeiro concerto foi realizado em 19 de julho de 1829, em Londres.
- No Rio Grande do Sul, a gaita chega com imigrantes alemães, por volta de 1846, em São Leopoldo, e em 1875, com a chegada dos italianos. Inicialmente, os instrumentos eram importados. Depois, começaram a ser fabricados aqui.
- Em 1939, surge, em Bento Gonçalves, a Todeschini & Cia. Em 1947, é rebatizada como Acordeões Todeschini. Chamada carinhosamente de Rainha do Fandango, até hoje é referência quando se fala em acordeons de oito baixos nacionais. Em 1971, um incêndio destruiu seu parque industrial, interrompendo a fabricação. O Rio Grande do Sul já teve 21 fábricas do instrumento. Hoje, tem uma, a Pampeana.
- Desde 2010, é reconhecido como instrumento símbolo do Rio Grande do Sul, por lei aprovada na Assembleia Legislativa.
*Fonte: Site Fábrica de Gaiteiros (fabrica de gaiteiros.com.br), Terson Praxedes, pesquisador do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore (IGTF), Renato Borghetti, Luiz Carlos Borges e Edson Dutra)
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