O documento reforça que não existe relação direta entre a dieta rica em colesterol e os níveis da substância no sangue
Durante muito tempo considerado um vilão da saúde, o ovo é cada vez mais recomendado na dieta
Foto: Carlos Romero Oreja / Deposit Photos
Jaqueline Sordi
Quando o escritor irlandês George Bernard Shaw (1856-1950) afirmou que "a ciência nunca resolve um problema sem criar pelo menos outros 10", ele poderia perfeitamente estar se referindo ao colesterol.
A polêmica que envolve a gordura ao longo das últimas décadas poderia ser a comprovação de sua tese. Desde o início do século passado — quando os primeiros estudos começaram a apontar que os alimentos ricos em colesterol são os responsáveis pelo aumento de uma série de doenças cardiovasculares —, ovos, carnes e outros representantes da classe têm entrado em uma verdadeira montanha-russa maniqueísta: ora são apontados por pesquisas como vilões e proibidos no cardápio, ora são considerados bonzinhos e liberados para consumo.
Com dados apontando para todos os lados, nem os especialistas parecem chegar a um consenso. No mais recente capítulo dessa novela (mas não necessariamente o último), estes alimentos acabaram de ser absolvidos de toda e qualquer acusação. No início deste ano, o Dietary Guidelines Advisory Committee (Comitê de Recomendação de Guias Dietéticos, em tradução livre) do governo dos Estados Unidos se posicionou contra a limitação do consumo de colesterol para adultos.
O documento chegou para reforçar o que outras pesquisas vêm apontando há alguns anos: não existe relação direta entre a dieta rica em colesterol e os níveis da substância no sangue. E isso é explicado pelo fato de que uma proporção muito pequena do colesterol presente no sangue vem do prato de comida. É o nosso próprio corpo, a partir do fígado, quem produz sozinho mais de 70% da substância. Aqui, o que conta são fatores como predisposição genética e sedentarismo.
Para amantes de ovos fritos, frango assado e coração de galinha, a notícia é boa. Mas antes de sair comemorando (e enchendo o prato), é preciso lembrar: esses mesmos alimentos são ricos em outras gorduras. E elas, pelo menos até agora, ainda são as grandes inimigas de uma vida saudável.
Vilão ou mocinho?
Foi no início do século passado que a guerra contra o consumo de colesterol começou a ganhar munição. As primeiras pesquisas associando alimentos à elevação dos níveis do colesterol "ruim" no corpo levaram órgãos de referência em todo o mundo a determinar o seu combate.
Quem liderou essa frente foi a Associação Americana do Coração, que apontou o ovo como um dos principais inimigos do coração. Na época, a entidade estabeleceu um limite diário para consumo de 300 miligramas de colesterol — o que corresponde a um ovo e meio — determinação adotada ao redor do mundo e que se mantinha intocada até pouco tempo atrás.
— Isso ocorreu porque estudos foram muito claros em demonstrar uma relação direta dos níveis de colesterol no sangue com doença cardiovascular. Por isso pensamos que o colesterol de nossa dieta faz mal para a saúde. No entanto, estas são duas coisas distintas. Uma série de pesquisas mais recentes já demonstrou não haver relação direta entre a quantidade de colesterol ingerido pela alimentação e os níveis presentes no sangue — afirma Fernando Gerchman, professor do Serviço de Endocrinologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
Foi principalmente a partir da década de 1990 que começaram a surgir os primeiros indícios de que a redução do colesterol na dieta não tinha um papel importante na prevenção de doenças arteriais. Em 2004, Sylvan Lee Weinberg, presidente do Colegiado de Cardiologistas dos Estados Unidos, publicou um editorial na revista da entidade assegurando este posicionamento.
Em um estudo divulgado no British Medical Journal em 2013, com mais de 474 mil participantes, não foi demonstrada relação entre o consumo de ovo e os riscos de infarto, angina e derrame em pessoas sem diabetes.
A questão genética
Como a ciência não entrega respostas sem suscitar outras perguntas, a absolvição dos alimentos ricos em colesterol fez com que pesquisadores passassem a estudar mais a fundo os mecanismos de funcionamento desta gordura para apontar quem é, então, o verdadeiro culpado quando altos índices se apresentam no sangue.
O endocrinologista Airton Golbert, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) e professor de Endocrinologia na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UCSPA), afirma que, como mais de 70% do colesterol circundante em nosso corpo é derivado de produção endógena, ou seja, pelo próprio organismo, quem determina seus níveis são principalmente fatores genéticos:
— Quem tem, por exemplo, um nível de colesterol "bom" alto, o que é genético, tem muito menos risco de desenvolver doenças relacionadas ao colesterol e, portanto, não tem necessidade de tantos cuidados alimentares na sua dieta.
Entretanto, não é toda a população que pode respirar aliviada e se atirar em um prato de ovos fritos. Assim como a genética favorece alguns, ela impõe limites mais severos para outros, que devem redobrar os cuidados à mesa.
— Hoje se sabe que algumas pessoas teriam mais propensão a ter influência dos alimentos no seu nível de colesterol e, consequentemente, no risco de doenças cardiovasculares — resume Golbert.
É o que Gerchman também defende. Para ele, quem tem propensão genética ao colesterol "ruim" alto não deve consumir alimentos ricos em gordura.
Verdadeiros inimigos
Se, por um lado, os limites de consumo diário de alimentos ricos em colesterol estão sendo mais contestados do que nunca, o mesmo não se pode dizer dos limites referentes àqueles ricos em gordura saturada e trans. De acordo com especialistas, a ingestão dessas gorduras produz muito mais colesterol no sangue do que os próprios alimentos que são ricos nesse tipo de gordura. E é principalmente aí que as pessoas devem ficar atentas.
O consumo de carne vermelha, por exemplo, tem sido associado a um aumento na incidência de diabetes, principalmente quando a carne é do tipo processada.
— O balanço adequado do consumo de gorduras é uma das questões mais relevantes para evitar alterações nos níveis de colesterol. As gorduras saturadas são os componentes da dieta que mais elevam os níveis de colesterol, por reduzirem a capacidade de remoção do colesterol da circulação. As gorduras trans fazem o mesmo papel, além de diminuírem o "bom" colesterol, sendo um componente alimentar ainda mais prejudicial à saúde — destaca a cardiologista Maria Cristina de Oliveira Izar, professora do Setor de Lipídios, Aterosclerose e Biologia Vascular da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
É importante ressaltar que 60% dos alimentos ricos em colesterol também apresentam gordura saturada e trans, como salsichas, bacon e queijos. Airton Golbert, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), afirma que a recomendação para se manter saudável ainda é o consumo de muitas fibras, saladas e frutas, mantendo restrição a gorduras saturadas.
Sem benefícios
Enquanto alguns alimentos ricos em colesterol deixam de ser vilões segundo as pesquisas mais recentes, outros — os "mocinhos" que ajudam a regularizar os níveis de colesterol "bom" no sangue — tiveram também seu papel relativizado. A profissional de Educação Física Patrícia Vieira, presidente da Associação de Hipercolesterolemia Familiar (AHF), explica que, para a formação do colesterol bom, são necessárias as boas gorduras vindas da dieta e, também, as fibras.
Entretanto, grande parte dos alimentos que contêm essas propriedades também apresentam outros compostos que não são tão bons assim para a saúde, diz o endocrinologista Fernando Gerchman.
Óleo de oliva, chocolate amargo, nozes e castanhas podem fazer bem, mas quem determina o quanto de benefícios eles trarão para cada pessoa é a genética Até o momento, para aumentar os níveis do colesterol bom, a recomendação mais prevalente é manter uma rotina de exercícios físicos.
O que é
O colesterol é um tipo de lipídio, uma gordura que faz parte da membrana de nossas células e que participa de diversas funções no organismo.
O "bom" e o "ruim"
Quando se fala em níveis de colesterol bom e ruim, na verdade se faz referência à quantidade de dois tipos de lipoproteínas que transportam o colesterol no sangue.
O LDL — ou colesterol "ruim" — transporta o lipídio do fígado até as células dos tecidos e favorece o seu acúmulo nas paredes internas das artérias, diminuindo o fluxo do sangue, o que está diretamente relacionado a doenças cardíacas.
O HDL — ou colesterol "bom" é responsável por retirar o lipídio dos tecidos, removendo-o das artérias e transportando-o de volta ao fígado para ser eliminado.
As funções do colesterol
- Compõe 20% das membranas celulares. Por isso a importância dele na manutenção da integridade destas estruturas.
- Ajuda na formação dos ácidos biliares, que atuam na absorção de gorduras pelo intestino.
- Age na produção de hormônios sexuais. Nos testículos, está envolvido na produção de testosterona. Nos ovários, participa da síntese de progesterona e estrogênio.
DIÁRIO GAÚCHO
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