O meu último texto, quando foi para as redes sociais, provocou reações. Ah, mexer com as palavras, às vezes pode ser por demais difícil ou, como diria Manoel de Barros, pode “cultivar irresponsabilidades”. Sentiram medo quando eu informei que uma pesquisa dá conta de que o mar pode subir até a mureta do Copacabana Palace,mas o que eu desejava era causar vontade de sermos todos mais inventivos. E fiquei pensando: como fazer para fugir desse sentimento, o medo, que traz desânimo, paralisia, contrai sem descontrair? E, afinal, a quem interessa cultivar tanto medo?
Busquei algo que pudesse me inspirar. Alguém me indicou, na internet, uma palestra magnífica do escritor português Mia Couto (sob esse aspecto, bendita reação dos leitores que me fez ouvir palavras quase sublimes). Convidado – vejam só! – para falar numa conferência sobre segurança em Estoril, ele leu um texto de uma lucidez e de uma poesia absurdas. Em apenas sete minutos. Não há conclusão possível, mas, vá lá, se é preciso concluir, fiquem com o título que ele deu ao escrito: “Há quem tenha medo que o medo acabe”.
Mia Couto começa listando seus medos da infância e, sim, me remonta aos medos de todos nós, que nascemos nos anos em que a Guerra Fria era mais do que uma possibilidade, quase uma certeza. O mundo iria acabar quando uma das duas potências resolvesse jogar em cima de nossas cabeças a bomba atômica. Os de nossa faixa de idade – Mia Couto tem 54 anos – hão de se lembrar também daquela piada que dizia que comunista come criancinhas. Hoje é engraçado, mas ser criança naquela época era conviver com esse pânico. Ser raptado e comido por um senhor barbudo a qualquer momento na rua não é, exatamente, uma imagem de sonhos.
Tudo isso é dito por Mia Couto de um jeito simples, convincente. Mas é quando se aproxima do presente real, do presente vivo, em que alerta para o fato de que os fantasmas dos nossos dias são fabricados por quem precisa mantê-los sempre em pé, que Mia Couto emociona ainda mais. Vejam:
“Para fabricar armas é preciso produzir inimigos. Para produzir inimigos, é imperioso sustentar fantasmas. A manutenção deste alvoroço requer um dispendioso aparato de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem: para superarmos as ameaças domésticas, precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade. As armas têm medo que não existam mais guerras porque, se assim for, qual o sentido de sua existência?”
Todos sabemos que o caminho tem que ser outro, diz Mia Couto, não sem antes acrescentar à lista dos fantasmas produzidos pelo atual sistema civilizatório, a natureza. “A realidade é perversa, a natureza é traiçoeira e a humanidade é imprevisível”, lembra ele, pontuando assim os medos que andamos carregando e que nos pesam sobre os ombros a ponto de causar um impacto quase tão forte quanto aquele que sentíamos na infância. Viver e crescer com medo de tudo, é isso mesmo?
Quero rever a minha parte na construção de tais fantasmas, mesmo enquanto um microcosmo. Afinal, toda palavra é palavra de ordem, diz o filósofo Gilles Deleuze, não importa se escrita ou falada. A natureza não é traiçoeira, não será assim se a humanidade souber lidar com seus impactos. O problema não é o mar alcançar a Avenida Atlântica daqui a cem anos, claro que não. O problema será, como já acontece, manter pessoas em risco e isso só ocorre porque há desigualdade demais. Lembra Mia Couto: “Há uma arma de destruição massiva que está sendo usada todos os dias em todo o mundo sem que seja preciso o pretexto de guerra, a fome. Uma em cada seis pessoas passam fome e o custo (para livrá-las disso) seria uma fração muito pequena do que vem sendo gasto no armamento”.
É disso que se trata. E de criatividade. Não, melhor: inventividade. Ontem à noite, no grupo de estudos, lembrou-se que essa palavra - “criatividade” - já ganhou outros contornos, talvez tenha mesmo se banalizado, de tanto que se fala. Melhor lembrar que o homem é capaz de inventar caminhos para se livrar dos problemas. Quando livre, de maneira hábil.
Pois lá no Sergipe, por exemplo, existe uma fruta chamada mangaba que vem enchendo de orgulho e sustentando grupos de mulheres depois que elas se associaram. Descobri o projeto “Catadoras de Mangaba – Gerando Renda e Tecendo Vida em Sergipe” numa conversa com pessoas que passaram o carnaval naquele estado e ficaram encantadas, sobretudo, com a vivacidade do grupo.
Mangaba é uma fruta que dá em sete estados brasileiros, mas Sergipe é o maior produtor. Antigamente, servia como comida para os porcos, mas aos poucos foi se descobrindo que é possível fazer muito mais com ela. Em 2011 criaram o tal projeto que cadastrou 765 mulheres e, indiretamente, atuou com 1.357 famílias que trabalham em terras devolutas ou de terceiros. Esses detalhes estão num site muito bem organizado.
A inventividade do grupo veio no momento de buscar apoio com a iniciativa privada e com a academia para produzir muitas coisas a partir da mangaba. E a última notícia que o site traz é de dar esperança: em Indiaroba, um dos municípios beneficiados pelo projeto, a mangaba foi introduzida na merenda escolar. Em vez dos bolinhos empacotados e industrializados, a criançada come bolinhos de mangaba feitos ali mesmo. E elas gostam. A segurança alimentar, assim, está garantida ali.
Por que as catadoras de mangaba entraram aqui num texto onde falo sobre medos? Porque elas têm que lutar, lá também, contra um inimigo maior: a destruição das árvores que dão mangaba. Em nome do progresso, claro. No caso, o turismo local é que está sendo o maior predador porque árvores são derrubadas para limpar o terreno onde pisarão turistas interessados em conhecer a cultura local... antes que acabe.
Diz um texto do site: “Quando as catadoras realizam o extrativismo da mangaba, esse é feito, na sua maioria, de forma coletiva, procurando fortalecer os laços familiares e os laços de amizade que existem nas comunidades”. É essa percepção de pertencimento, de grupo, de relação, que fortalece as catadoras.
Tentei falar pelo telefone com algumas delas, mas não consegui. Há no site, no entanto, depoimentos bem gostosos de ouvir. Reproduzo aqui o sonho de Maria Pureza Correa, que diz ser catadora desde criança:
“Se eu pudesse plantar mais, fazer reflorestamento com a árvore da mangaba... Há muito corte de planta principalmente da mangaba. (Essa ocupação) Poderia abranger a alta sociedade. Falam muito em preservação ambiental e às vezes derrubam árvores que já estão plantadas para plantar eucalipto ou outro tipos de coisas que não é o que a gente quer. Meu sonho é ver o planeta com mais mangaba.”
É isso. Elas falam sobre sonhos, não sobre medos. Estão potentes, não curvadas nem aprisionadas.
E, assim, com essa história aparentemente bem resolvida – não sem muito trabalho árduo, contato com a terra, sob sol e chuva – me redimo com os leitores. Há saídas, e a humanidade sabe bem como encontrá-las.
http://g1.globo.com/natureza/blog/nova-etica-social/post/ha-saidas-e-humanidade-sabe-encontra-las.html
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