Como a ganância do mercado colocou um smartphone no seu bolso
Li ontem alguém dizendo o seguinte:
– O que acham que é o socialismo: “ninguém pode ter iPhone”.
– O que é o socialismo: “TODOS podem ter iPhone”.
Bonito. E ingênuo. Na Alemanha Oriental, o “iPhone”, o objeto tecnológico que todo mundo queria, era o Trabant, um carrinho simpático (tenho uma miniatura em casa), simplório a ponto de fazer uma Brasília parecer um Bentley, mas cheio de boas sacadas de engenharia (a começar pela carroceria, feita de “duroplast”, um derivado de petróleo que os alemães orientais desenvolveram para substituir o aço automotivo, em falta por lá, já que eles não tinham moeda forte para importar aço).
O Traby, fabricado pelo Estado, tinha o preço fixado em 4 mil Marcos Orientais (DDR-Marks). E de fato: TODOS podiam pagar, já que o salário médio (em 1985) era de 1.140 DDR-Ms. Um aninho de cinto apertado bastava para uma família ter um Traby. Wunderbar!
Só tinha um problema: se você não fosse membro do Partido Comunista nem desse um jeito de pagar ágio, a fila de espera por um Traby era de 15 anos.
Claro: a quantidade de Trabants que o Estado podia produzir era limitada. Duroplast, pistão, câmbio, estofamento de banco… Nada disso caía do céu. Equivalia a toneladas de matéria prima e de trabalho, tanto braçal quanto intelectual. Como matéria-prima e trabalho são recursos limitados, a produção não acompanhava a demanda. E o ato de comprar um carro equivalia a fazer um plano de previdência privada. Vc pagava o sinal aos 35 anos e recebia o carro aos 50 – e estamos falando de um veículo com motor de cortador de grama (26 cv), e que soltava tanta fumaça quanto um forno de pizzaria.
Houvesse liberdade para que a própria população produzisse Trabants (ou qualquer outra coisa com quatro rodas), via iniciativa privada, a oferta logo supriria a demanda. Mas não: a iniciativa privada era ilegal. Então o jeito era passar a vida na fila esperando seu carro sair das fábricas estatais.
Corta para hoje. Um iPhone típico no Brasil custa QUATRO salários mínimos – mesma proporção que um Traby custava em relação ao salário médio da Alemanha Oriental (que era meio que o equivalente ao salário mínimo deles, já que não havia grandes disparidades salariais). Logo, um iPhone aqui é um objeto tão inacessível quanto era um carro na velha DDR, a Deutsche Demokratische Republik. Estamos na pior, então, certo?
Não, porque tem uma diferença aí. O iPhone é um objeto de luxo, um Rolex da classe média: a Apple prefere vender caro para menos gente do que barato para mais gente. Paciência. Mas nem por isso o grosso da população fica sem WhatsApp, Waze, FB, Youtube. Gmail e câmera digital no bolso. Qualquer smartphone mais barato roda tudo isso. Como iniciativa privada não é crime, a gama de smartphones tende ao infinito, e cobre virtualmente todas as faixas de preço. Graças a Google, Samsung e outros tantos eles são produtos tão de massa quanto o salsichão era na DDR.
De massa mesmo: o Brasil tem hoje 168 milhões de smartphones em uso, segundo a FGV.
Isso dá 84% da população – contando os bebês. Mesmo no Brasil, um país-rascunho, que segue na fronteira entre o feudalismo e o capitalismo de fato, o grosso da população tem Smart Phone (se colocarmos celulares não-smart na conta, temos uma proporção tão grande quanto a de cidadãos com acesso a papel higiênico).
E nada disso acontece por ideologia do Google, da Samsung, da Huawei. Claro. Como Adam Smith escreveu em 1776: não é a bondade do padeiro que nos proporciona pão quente todas as manhãs. É a ganância do sujeito. Ótimo, então. Que o padeiro, a Samsung e o escambau continuem gananciosos.
Dito isso, eu gostaria de reescrever a frase lá de cima:
– O que acham que é o capitalismo: “Só os ricos podem ter iPhone”.
– O que é o capitalismo: “TODOS podem ter smartphone”.
E calma. Não estou dizendo que o capitalismo puro é a panacéia da humanidade – todo país precisa de algum meio de redistribuição de renda, a começar pelo nosso. Mais: a própria palavra “capitalismo”, como me lembrou hoje uma amiga, é uma distorção. Confunde liberdade de vender e comprar o que você bem entender, com coisas que ou são crime ou deveriam ser – oligopólios, cartéis, exploração, trabalho escravo, castas sociais.
O que eu defendo aqui é outra coisa: a liberdade de iniciativa. E faço isso por convicção de que essa é a arma mais eficiente contra a pobreza. Se a proibição da iniciativa privada reduzisse a probreza, eu iria para a rua exigir a estatização de tudo. Mas não é o que a realidade mostra. No mundo real, Estados agigantados simplesmente não conseguem prover suas populações. Não falta só smartphone nesses lugares. Falta papel higiênico.
Por: Alexandre Versignassi
Fonte: Superinteressante
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