Na minha caminhada matinal não chego a alcançar outro bairro, mas vou a uma boa distância. E hoje já atravesso o “território privado” de três casais, felizmente sem filhos, que conseguem um canto para dormir nas calçadas, se abrigam com roupas e cobertas doadas. Um deles tem até um rádio, que o homem põe para tocar bem cedo com as notícias do dia. Há cerca de seis meses, eram apenas dois casais, dois pedaços de calçada ocupados. Na minha tosca pesquisa, vi um aumento de 50% dos sem-teto aqui na vizinhança, portanto.
O Brasil livrou milhões da miséria desde a era Lula, e isso é fato. Mas o Rio de Janeiro, que vai receber as Olimpíadas e onde aconteceu a final da Copa, virou uma cidade vitrine. Muita gente quer vir para cá atrás de sonhos que nem sempre conseguem tornar reais. De verdade mesmo, temos é um baita problema de moradia que compartilhamos com outros grandes centros urbanos globalmente. Metade da população mundial vive em áreas urbanas, sendo que um terço das pessoas está em favelas e assentamentos informais. O número de cidadãos morando em favelas aumentou de 760 milhões, em 2000, para 863 milhões, em 2012. Estimativas apontam que, até o ano 2050, mais de 70% da população mundial estará vivendo em cidades.
Todos esses dados estão no site da ONU (www.onu.org.br), que elegeu a brasileira Raquel Rolnik como sua relatora especial sobre direito à moradia adequada. Foi no blog da urbanista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP que assisti a um documentário sobre uma ocupação urbana chamada Eliana Silva, em Belo Horizonte, que me fez pensar bastante. São quase 300 famílias que estavam vivendo em situação semelhante aos casais que encontro em meu caminho. Decidiram se juntar, fizeram mutirões, receberam ajuda de estudantes de arquitetura, ergueram casas, uma creche para abrigar as crianças e acalmar o pessoal do Conselho Tutelar. E lá estão vivendo, já há cerca de dois anos, com medo, sempre, de serem desocupados pelas autoridades governamentais, claro.
Porque, por mais que possa parecer razoável aos olhos de quem está distante, como eu, que só enxergo o problema e uma possível solução, aquele terreno deve ter “dono”. E aí... Até mesmo a solução alternativa que encontraram, com a ajuda dos estudantes, para tratar o esgoto, usando bananeiras para sugar a água suja, fica sendo apenas uma atitude fora da ordem, da lei.
Temos o “Minha Casa Minha Vida”, programa do governo federal que faz cinco anos e prevê entregar, até o fim de 2014, dois milhões de casas. Mas o Movimento dos Sem-Teto diz que há sete milhões precisando de moradia, portanto essa conta não vai fechar. Em nível mundial não existem dados concretos, segundo afirma Raquel Rolnik no Informe que apresentou à ONU em 2012.
“A insegurança da posse é um fenômeno mundial. No entanto, a avaliação da natureza e a magnitude do problema tropeçam com dificuldades de definição e quantificação, e não se dispõe de dados exatos. Isso acontece devido ao fato de que a segurança da posse é, em parte, uma questão de percepção e experiência que depende, em grande medida, do contexto político, econômico e cultural, além de ser uma questão de caráter jurídico”, diz ela no documento.
“O Futuro que queremos” é o nome do texto que os líderes mundiais escreveram em conjunto após a Rio+20, Conferência sobre o Meio Ambiente que reuniu mais de 130 deles aqui no Rio. Lá diz que é urgente livrar a humanidade da pobreza, da fome. Diz ainda que é preciso promover um crescimento econômico sustentável, equitativo. Está implícito o direito à moradia, é claro. Mas, como fica claro também, é grande a distância entre escrever, assinar e tomar iniciativas reais.
Muitos dos que estão nas ruas perderam suas casas em eventos extremos. E há grandes chances, segundo cientistas, de que tais eventos se avolumem se não se tomar, a partir de agora, providências no sentido de baixar as emissões de carbono. Portanto, aqui se juntam as três pontas da cadeia: social, meio ambiente e o econômico, já que para se evitar emissões as empresas precisarão parar de pensar em fazer negócios como sempre fizeram e promover uma mudança real de gestão.
Nesse processo de reflexão busquei em meus arquivos um texto que serve para aferventar as dúvidas e a minha inquietação sobre o nosso sistema econômico. O artigo se chama “Padrão de Vida” e foi escrito por Serge Latouche, filósofo e economista francês, professor na Universidade de Paris e um seguidor da teoria de decrescimento, para o livro “The Development Dictionary” (Zed Books). Latouche traça uma linha histórica sobre o tal padrão. Ele foi definido na Carta dos Estados Unidos em 1945 e reafirmado no discurso do presidente Truman ao Congresso em 1949, quando anunciou a necessidade de ajudarem as pessoas de economias subdesenvolvidas a construírem seu padrão de vida.
Em 1954 as Nações Unidas determinaram, num texto, o que seria viver dignamente. E lá há uma receita com 12 ingredientes, incluindo, sim, a moradia, além de instalações domésticas adequadas.
“Todavia, na prática, tais conceitos tão largos têm sido apenas simbólicos”, escreve Latouche. O impacto do texto, segundo o autor, é questionável. Mesmo nos lugares onde levou a ações concretas no sentido de se garantir necessidades básicas, autossuficiência em produção de alimentos ou tecnologias apropriadas, os resultados são ambíguos.
Para o escritor, alcançar o padrão de vida impresso globalmente pelo Ocidente, sobretudo nos anos pós-guerra, virou uma espécie de obsessão diária, mesmo nos países que viviam uma economia que absolutamente não comportava tal estilo. Para ajudá-los, os ricos se prontificaram a fazer empréstimos. E as dívidas começaram a crescer, o que só fez aumentar a corrida e o fosso entre pobres e ricos.
E assim chegamos aos casais sem-teto da minha vizinhança? Talvez, mais do que tudo, chegamos à possibilidade de questionar, inclusive, a eficiência de textos tão altamente elaborados por representantes de todas as nações, como “O futuro que queremos”, editado depois da Rio+20. Mas, se não for assim, como seria? Hegemonizar as medidas parece ser a única via, mas o alerta feito por Latouche sobre um único padrão de vida perseguido mesmo por quem não tem como alcançá-lo faz sentido para mim.
Um imposto maior para os mais ricos, como quer Thomas Piketty, seria um caminho para se ter uma sociedade mais justa? Um indicador diferente do PIB, como querem os economistas Joseph Stiglitz, Amartya Sen e Jean-Paul Fitoussi, que coubesse nele a qualidade de vida e as diferenças? Um mundo financeiro com menos ganância? A produção industrial menos faminta sobre os recursos naturais?
Tem mais possibilidades. Até mesmo respeitar atitudes como a dos cidadãos que se juntaram para fazer o assentamento em Belo Horizonte, usando recursos próprios, doações, para buscar uma forma de dormir mais dignamente do que na calçada ao relento. Afinal, alguns povos antigos africanos acreditavam que a verdadeira miséria está em ser sozinho.
De ações globais a ações locais, do macro para o micro. Claro, nada é tão simples assim. Mas é bom refletir.
http://g1.globo.com/natureza/blog/nova-etica-social/post/pessoas-sem-teto-um-problema-que-so-cresce-nas-grandes-cidades.html